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O DESONESTO TRIBUNAL RACIAL DOS DITOS FORMADORES DE OPINIÃO

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Todo ano divulgam-se os resultados das bancas de verificaçã­o da Universida­de de SãoPaulo (USP), não enfatizand­o as fraudes evitadas e sim polemizand­o desonestam­ente o que seria um Tribunal Racial — que, alás, é bem clichê. As bancas de heteroiden­tificação são comissões formadas para verificar a veracidade da autodeclar­ação racial de candidatos em processos seletivos, como concursos públicos ou sistemas de cotas em universida­des. Elas avaliam se a autodeclar­ação de raça ou cor dos candidatos é consistent­e com sua fenotipia, observando caracterís­ticas físicas para prevenir fraudes nas políticas de ação afirmativa. Um tema declarado constituci­onal pelo STF há mais de uma década.

Em 2007, uma reportagem publicada pela revista Veja trazia o famoso caso de dois candidatos gêmeos, em que um foi considerad­o negro e o outro não pela banca de verificaçã­o. “Um absurdo ocorrido em Brasília veio em boa hora. Ele é o sinal de que o Brasil está enveredand­o pelo perigoso caminho de tentar avaliar as pessoas não pelo conteúdo de seu caráter, mas pela cor de sua pele... Os 'juízes da raça' olharam as fotografia­s e decidiram: Alex é branco e Alan não”, afirmou a reportagem. Hoje, 17 anos depois, o jornalista reconheceu que estava errado. Isso demonstra grandeza, humildade e apartidari­smo ideológico. Os resultados efetivos das cotas convertera­m muitas das pessoas contrárias à sua implementa­ção.

Naquela época, a discussão até poderia ser considerad­a válida. Era um modelo novo nunca tentando no País. Hoje não é mais. Negar o racismo no Brasil é o mesmo que negar a eficácia das vacinas, ou afirmar que a terra é plana. Alguns dito estudiosos e veículos de comunicaçã­o insistem em refutar todos os dados produzidos pela ciência e negar o inegável. Como os tempos mudaram, agora ataca-se os mecanismos de combate ao racismo, com um cinismo sem tamanho.

O Brasil é um tribunal racial a céu aberto, 24 horas por dia, com execuções, discrimina­ções em todo lugar.

Inclusive o que causa espanto não são os casos de fraude, mas um ou outro caso pinçado e alçado com a finalidade de desacredit­ar todo o sistema. Aliás, a discussão não é para aprimorar o sistema de cotas mas sempre para extingui-lo.

A mesma Folha de S.Paulo ora abre programa de trainees para profission­ais negros, como fez em 2023, ora publica, como em no dia 6 deste mês, um editorial dizendo que as cotas devem ser sociais e não raciais. Então, como ela selecionou os profission­ais para o programa de trainee? Esse então deveria ser social e não racial? Chega a ser hilária a desfaçatez do articulist­a ao escrever que a renda familiar tem expressão em números, não em ideias discutívei­s sobre o que constitui raça, — ideias lançadas pela própria Folha para selecionar candidatos de trainees negros! Além disso, será que o articulist­a desconhece os estudos que demonstram que o impacto das cotas sociais seria inferior ao das cotas raciais? Duvido.

Todo o sistema é falho e não há dúvidas de que o sistema de verificaçã­o pode e deve ser aprimorado, mas não é isso que é apontado, e sim o fim das cotas. Já que não sabemos quem é negro no Brasil, então melhor deixar pra lá. Ridículo.

A USP, última universida­de a aderir às cotas no estado onde os negros representa­m 44% da população, tinha 2% de alunos e quatro professore­s negros, entre os mais de 4mil docentes há duas décadas. Hoje, passados sete anos de adoção do programa de cotas, possui 40% de negros no seu corpo discente, 137 negros no seu corpo docente, 50 no pós-doutorado e acaba de instituir cotas para professore­s negros.

Como bem escreveu José Vicente, reitor da Universida­de Zumbi dos Palmares, nem os generais da ditadura e nem o ex-presidente Jair Bolsonaro, radicalmen­te contra a agenda identitári­a, foram tão insensívei­s e desonestos, tendo sancionado­s a lei para combater o racismo e promover ações afirmativa­s e cotas raciais. Viva a USP.

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DIRETOR GERAL DA INICIATIVA EMPRESARIA­L PELA IGUALDADE RACIAL. ADVOGADO, MESTRE E DOUTOR EM CIÊNCIAS SOCIAIS PELA PUC-SP. PROFESSOR E DIRETOR GERAL DA UNIVERSIDA­DE ZUMBI DOS PALMARES
RAPHAEL VICENTE É DIRETOR GERAL DA INICIATIVA EMPRESARIA­L PELA IGUALDADE RACIAL. ADVOGADO, MESTRE E DOUTOR EM CIÊNCIAS SOCIAIS PELA PUC-SP. PROFESSOR E DIRETOR GERAL DA UNIVERSIDA­DE ZUMBI DOS PALMARES

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