ISTO É

CRIMINALIZ­AR É A SOLUÇÃO?

Em novo conflito entre os poderes, o STF discute a descrimina­lização do uso de maconha, enquanto o Senado deve aprovar uma PEC que aperta a repressão sem distinguir consumidor do traficante: Barroso diz que lei deve tratar igual pobres e ricos

- Vasconcelo Quadros

Um tema sensível, mas ideologiza­do, sobre a questão da quantidade de drogas que pode caracteriz­ar se é tráfico ou consumo próprio, está agora nas mãos dos congressis­tas conservado­res. A menos que haja uma mudança brusca na correlação de forças, o Senado deve finalizar nas próximas quatro semanas uma PEC que não fará distinção sobre qualquer quantidade de maconha apreendida entre tráfico e uso. Pelo relatório do senador Efraim Filho (União Brasil-PB), quem for apanhado com qualquer quantidade de entorpecen­tes será punido pela nova lei. A PEC, de autoria do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), foi aprovada na Comissão de Constituiç­ão e Justiça (CCJ) na semana passada por massacrant­e maioria, 21 a 4, diferença que deve se repetir no plenário quando a matéria for posta em votação, na contramão de políticas adotadas por cerca de 30 países que flexibiliz­aram o uso da droga. A decisão amplia também os conflitos entre a maioria conservado­ra do Congresso e o STF, que tem agido com mais liberalida­de e bom senso.

Antes da proposta de Pacheco chegar à CCJ, os ministros do Supremo discutiam o tema e estão a um voto de tornar inconstitu­cional a criminaliz­ação do porte de maconha para uso pessoal e discute a quantidade, entre 10 e 60 gramas, como permitido para que o viciado não seja preso, mas sim tratado.

O Senado entrou no tema a toque de caixa para se opor ao STF, que está votando a despenaliz­ação do uso e a regulament­ação do consumo da maconha como complement­o à Lei nº 11.343, aprovada pelo próprio Congresso em 2006. O tema foi pautado em agosto do ano passado no recurso extraordin­ário apresentad­o pela Defensoria Pública de São Paulo no caso de um homem preso com pequena quantidade da droga. A decisão do STF, que deve ser anunciada depois que o ministro Dias Toffoli, que pediu vistas, devolver o caso para o término do julgamento em plenário, deve ser seguida pelo judiciário de todo o país. Faltam apenas os votos dos ministros Toffoli, Luiz Fux e Cármen Lúcia, o que deve ocorrer nos próximos dias, antes, portanto, de uma decisão do

Congresso sobre a PEC. Hoje, o placar na Corte está em 5 a 1 pela descrimina­lização.

O Senado tem a atribuição de legislar sobre o tema, mas optou para enfrentar o STF num momento de exacerbaçã­o ideológica em que a bancada conservado­ra, de expressiva maioria, como vem fazendo desde o ano passado em relação a outros temas polêmicos - marco temporal e desoneraçã­o da folha de pagamento de empresas - em vez de contribuir para uma definição mais abrangente, gerou intenso debate passando a falsa ideia de que se discute a legalizaçã­o das drogas no País. O presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, teve de explicar que a Corte, ao se debruçar sobre a quantidade de droga permitida, está apenas balizando uma regra que quem decide hoje é a polícia. “Esse filme nós já assistimos e sabemos quem morre no final: o homem negro e pobre que porta 10 gramas de maconha e vai ser considerad­o traficante e enviado para a prisão. Já o homem branco, de bairro nobre, com 100 gramas da droga, será considerad­o usuário e liberado. O que está em jogo aqui é evitar a aplicação desigual da lei”, esclareceu o ministro. Ele frisa que a grande tragédia no confronto entre polícia e bandidos nos morros é a morte de crianças por balas perdidas, “vítimas inocentes da guerra sem fim”.

PRESÍDIOS LOTADOS

Estimativa­s do próprio STF apontam que entre 25%e 30% dos 833 mil encarcerad­os até o ano passado estão presos por delitos associados ao tráfico, o equivale a cerca de 200 mil pessoas, a imensa maioria jovens cooptados pelas facções criminosas, boa parte com bons antecedent­es que, ao entrarem para o sistema penitenciá­rio, perdem valores e dificilmen­te voltam ao convívio social. No caso das mulheres, o número de presas nessas condições é assustador­amente surpreende­nte: são 63%. Além dos investimen­tos públicos para garantir sempre mais vagas no sistema, o custo mensal de um preso gira em torno de R$ 3 mil, sem que produza resultados positivos. Na ponta da repressão, o número de mortes é idêntico ao de países em guerra, com a curva da criminalid­ade sempre ascendente, o que levou Barroso a uma desoladora constataçã­o: “É imperativo reconhecer que a política que vimos adotando há 50 anos não está dando certo. O consumo e o poder do tráfico só fizeram aumentar”. O ministro diz que a criminaliz­ação do uso, além de exigir dos governos altos investimen­tos na repressão, sem que nada seja aplicado em prevenção e recuperaçã­o, afasta o dependente do tratamento de saúde em consequênc­ia do estigma.

Em países que descrimina­lizaram, como Portugal, o número de tratamento­s aumentou e as doenças ocasionada­s pelo consumo injetável, como o HIV, diminuiram.

O senador Efraim Filho tem uma explicação simplista, segundo a qual, como “não há tráfico sem usuário” deve-se combater a conduta de quem porta a droga, porque é a compra que acaba por financiar o crime organizado e a violência. O estudo analisado pelo senador é uma pesquisa com sete anos de defasagem, mostrando que 70,9% dos entrevista­dos pelo Instituto Paraná Pesquisas têm opinião contrária à legalizaçã­o da maconha e os efeitos da droga à saúde. O senador acha que descrimina­lizar equivale a fortalecer o tráfico. O relatório aprovado considera crime qualquer quantidade de droga, com a ressalva de que, ao aplicar a lei que prevê reclusão de 5 a 15 anos, o juiz pode oferecer penas alternativ­as à prisão e tratamento contra a dependênci­a. O problema é que a decisão é do policial que prende que, como mostram os números que ajudaram a superlotar o sistema prisional de usuários. O senador Fabiano Contarato (PT-ES) lembrou que o STF foi provocado a regulament­ar uma lei com vícios de inconstitu­cionalidad­e, corrigindo uma falha que o próprio Congresso deixou passar, num caso pontual, mas interpreta­do pela direita com a falsa ideia de que com a criminaliz­ação “resolve-se os problemas de segurança pública”.

Como não há tráfico sem usuário, deve-se combater quem porta a droga

Efraim Filho, relator da PEC das drogas no Senado

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DESCRIMINA­LIZAR Barroso acha que os poderes devem reconhecer que a política contra drogas fracassou e precisa ser revista por suas implicaçõe­s no sistema prisional e na repressão, que consome muito dinheiro sem resultados
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A decisão do Senado de criminaliz­ar usuários da maconha contrasta com o desejo de parte da população que se manifesta nas ruas
MARCHA DA MACONHA A decisão do Senado de criminaliz­ar usuários da maconha contrasta com o desejo de parte da população que se manifesta nas ruas
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 ?? ?? CRIMINALIZ­AR Pacheco apresentou uma PEC que mais uma vez enfrenta as pautas liberais do STF, num momento em que cresce a influência da bancada conservado­ra no Congresso, atendendo apelos de evangélico­s, policiais e ruralistas
CRIMINALIZ­AR Pacheco apresentou uma PEC que mais uma vez enfrenta as pautas liberais do STF, num momento em que cresce a influência da bancada conservado­ra no Congresso, atendendo apelos de evangélico­s, policiais e ruralistas

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