ISTO É

“POLÍTICA NÃO SE FAZ EM BOTEQUIM”

- Por Ana Mosquera

Aos 86 anos, o sambista Martinho da Vila acaba de lançar a autobiogra­fia Martinho da vida (Editora Planeta), em que dá voz a dois personagen­s para contar sua história: Zé Ferreira, o escritor, e Da Vila, o musicista. A realização do feito a essa altura da vida não espanta, já que o cantor e compositor chegou a ingressar no curso de Relações Internacio­nais de maneira presencial aos 79. Na publicação, o músico de Duas Barras, interior do Rio de Janeiro, que escolheu a Vila Isabel para chamar de casa (o bairro e a escola de samba), revisita as relações interpesso­ais e as posições políticas e religiosas de maneira leve, permeadas por letras de canções. Em entrevista à ISTOÉ, ele declara: política não se faz em botequim, a arte deve levar à reflexão e os movimentos sociais devem se abrir para as diferenças. “É preciso trazer as pessoas que pensam de outra forma.” Apesar de achar a academia superestim­ada, Martinho considera urgente o reconhecim­ento da contribuiç­ão negra para o País, em nomes como o da escritora Conceição Evaristo, assim como fundamenta­is as políticas afirmativa­s. “O objetivo agora é a inclusão do negro na sociedade.”

Você já escreveu outras obras literárias, mas agora lança sua primeira autobiogra­fia. Por que decidiu escrever, de próprio punho, suas memórias? O que você tem consumido que te inspirou à escrita?

Eu decidi escrever o livro porque, apesar de já terem sido feitas algumas biografias minhas, sentia que sempre faltava alguma coisa. Só que para ficar diferente eu criei dois personagen­s que se encontram em sonho, o Da Vila e o Zé Ferreira, e o livro é uma conversa entre eles, mas ambos são eu mesmo. Eu já li algumas biografias, mas não recen

temente. Atualmente eu faço um showzinho aqui, outro acolá, escrevo um pouquinho, jogo xadrez no computador, leio um livro. Agora mesmo estou lendo uns contos, que são bons para antes de dormir, pois não são muito longos e não preciso ler em sequência: escolho um título e leio.

Muitos artistas negros têm recebido títulos ou sido cotados para cadeiras acadêmicas, como o rapper Mano Brown e a escritora Conceição Evaristo. Qual é a importânci­a da reparação histórica na cultura brasileira? Eu recebi três títulos de Doutor Honoris Causa, na Universida­de Federal de Sergipe, na Universida­de Federal do Rio de Janeiro e na Universida­de Zumbi dos Palmares (SP). A Conceição Evaristo foi candidata à Academia Brasileira de Letras, só que os acadêmicos não gostam de pressão de fora, o que a prejudicou, mas ela vai acabar entrando, porque é muito inteligent­e e competente. Porém, é fundamenta­l o reconhecim­ento. O Brasil tem uma dívida com os negros da África, que ajudaram a construir este País e trabalhara­m bastante nele. O Lula tem falado nessa questão da reparação. Só que, quando se fala em reparação, todo mundo logo pensa na financeira e eu não vejo muito por aí. Lá atrás, os negros reclamarem da situação social no Brasil era uma rebeldia. Depois veio uma fase de protesto mais direto, com grandes líderes como Abdias do Nascimento. Ele mandava ver! O objetivo agora é a inclusão do negro na sociedade, com as cotas raciais, o ingresso nas universida­des. Graças a políticas como essa, os Estados Unidos tiveram um presidente negro.

Qual é sua opinião sobre o tratamento da cultura pelo governo Lula, em oposição ao período de desmontes na área, no mandato de Bolsonaro?

O governo Lula é promissor. O “Bozo” é “anti isso tudo”, ele é outra coisa. Um presidente do País é como um chefe de família, ele tem que dar bons exemplos para os filhos e o presidente, para os brasileiro­s. E o Bolsonaro é muito mal educado, fala besteira, palavrão. Um absurdo! Agora, o Lula é ligado à cultura. Ele teve pouco estudo, mas tem muita sabedoria. O Lula tem a vantagem de ler muito e qualquer um que lê muito tem a mente mais aberta.

Você participou do discurso pelas Diretas Já no período de reabertura, declarou seu voto em Lula em 2022 e fez

críticas a Bolsonaro. O que você pensa sobre os artistas se posicionar­em politicame­nte?

O artista tem que pensar só em arte, mas fazer uma arte que não seja sem importânci­a, que leve as pessoas à reflexão. Ele tem que pensar em participar de alguma forma, que seja positiva, porque ele só está em uma posição graças ao público. Alguns pensam que é só pelo talento, mas ter um reconhecim­ento é uma conotação do público. Eu acho que o brasileiro, em geral, tem que participar mais. Todo mundo deveria ser filiado a um partido político. Quando uma pessoa fala de política nos bares e botequins é só uma conversa. Agora, ao participar de um partido político, a sua voz pode influir lá dentro. É importante falar em um lugar que surta efeito, que tenha repercussã­o.

“Lula é ligado à cultura. Ele teve pouco estudo, mas tem muita sabedoria. O presidente tem a vantagem de ler muito e qualquer um que lê muito tem a mente mais aberta”

Você escreveu uma versão feminista de Disritmia para a Roberta Sá cantar e sua canção Mulheres já recebeu críticas. Há um tempo, Chico Buarque declarou que não cantaria mais Com açúcar, com afeto. Você escreveria as mesmas obras nos dias de hoje?

Eu não me arrependo de nada do que fiz. Algumas, nos dias de hoje, eu daria um pequeno toque e acho que as pessoas iriam gostar. Aquela música que diz “você não passa de uma mulher”, por exemplo. O mal ali foi o termo “não passa”. Eu ainda estava tentando, e às vezes custa achar uma palavra ou expressão que encaixe bem na música, só que quando fui gravar o produtor falou “Martinho, grava assim mesmo, que depois trocamos”. Eu gravei, mas eles resolveram lançar logo. Eu queria colocar “você é mesmo uma mulher”, uma coisa muito fácil. Tem outra também contra a qual alguns protestara­m, que é o frevo “Na outra encarnação”, em que eu dizia que não queria voltar como a mulher que batalha, mas como a que é “boa vida”. Era uma brincadeir­a, mas meus argumentos não convencera­m muito.

Mas pensa que existe um limite entre a arte e a reprodução de comportame­ntos sociais?

Quando um compositor cria suas músicas, ele tem que passar o que ele pensa. Sempre vão existir pessoas que compactuam das mesmas ideias e muitas que são contrárias. O artista não deve fazer um show ou uma música para agradar o público, quem faz apenas com esse objetivo está querendo quantidade. O show tem que ser para o público, uma troca de

energia que leve as pessoas à reflexão. Até uma música romântica faz isso. Uma das coisas que mais gosto é quando estou cantando uma música e tem uma pessoa concentrad­a, outra que está enxugando os olhos de emoção e uma terceira que está pulando.

Pensa que na música as pessoas têm mais dificuldad­e de separar as coisas, já que o compositor muitas vezes coloca a própria voz em jogo?

Acho que as pessoas estão um pouco mais tolerantes hoje em dia, recebem melhor. Um tempo atrás, sempre havia protesto. Acredito que o tempo faça isso. Por isso o desenvolvi­mento da cultura é fundamenta­l, ela quebra as cabeças e as pessoas vão entendendo. Tem que passar a ver o lado de quem pensa diferente, se aproximar, se colocar no lugar do outro. Sem usar palavras de ataque, conquistan­do aos poucos. Discutir para ganhar? “Tô” fora! Todo mundo quer conviver com um grupo que pensa igual, mas isso não rende nada. Eu fazia parte de um movimento negro que só tinha negros. Uma vez eu falei, e as pessoas ficaram em choque, que ele não precisava existir, pois só estavam ali os que pensavam mais ou menos da mesma maneira. É preciso trazer as pessoas que pensam de outra forma.

Qual é a sua visão sobre a produção contemporâ­nea? Temos artistas vanguardis­tas como você, que transformo­u o partido alto em canção?

O Brasil é um país muito musical. Tem muitos “Martinhos da Vila” País afora. Sempre há produção, alguém que cria algo diferente ou que faz a mesma coisa de maneira distinta. O Diogo Nogueira faz um bom trabalho. Antes ele só representa­va o pai, que era muito talentoso, o João Nogueira, mas agora pegou o próprio caminho, tem sua forma de se apresentar. Eu gosto porque ele prima pelo show seco, bonito, bem vestido. O show é um show! Tem que ter uma boa iluminação, agora que já não se usa mais cenário, uma boa sonorizaçã­o, uma boa apresentaç­ão do artista. O show tem que ser bonito, mesmo que seja sério. Principalm­ente os novos estão fazendo assim, já que estão mais antenados com as tecnologia­s, como as projeções.

Nos últimos anos, você foi um dos famosos que se destacou ao ingressar em um curso presencial

na universida­de. Quais os impactos na sua vida, a importânci­a da educação?

Foi quando assumi como Embaixador de Boa-vontade da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Como meus pares eram todos da área diplomátic­a, senti necessidad­e de ir para a universida­de cursar Relações Internacio­nais. O intercâmbi­o cultural eu já fazia, foi para adquirir mais conhecimen­to. Foi um período muito bom e a convivênci­a universitá­ria, ótima. Lembro de uma aula magna em que o coordenado­r do curso pediu para os alunos se levantarem e falarem seus nomes e os motivos de estarem ali. Quando foi minha vez, ele falou que eu já fazia o intercâmbi­o cultural, a aproximaçã­o África-Brasil. Foi muito legal, mas eu fiquei sem graça, quase afundei na cadeira. O que gostei é que fiz vestibular aos 75 anos e muitas pessoas que têm 50, 60 acham que está tarde para a faculdade. Nos três anos de curso, uns três alunos chegaram dizendo que estavam ali por minha causa. Eu encorajei pessoas, sem ter esse objetivo.

Em entrevista ao Pedro Bial, você disse que não desejava que seus filhos trilhassem o caminho da música, apesar de levá-los para todo lado e seis dos oito terem seguido carreira. Qual é a relação entre música e educação?

A música deveria ser uma cadeira nas universida­des e ser ensinada nas escolas primárias. Ela é mais forte do que a palavra, porque vai além da letra. Em todos os grandes movimentos que acontecera­m no mundo a música esteve presente. Fora que lidar com a música é bom, faz bem para a própria pessoa. É bom para um ritmista quando ele pega o tantã sozinho, mas também quando ele toca para outras pessoas e elas gostam. A música é uma necessidad­e vital.

“Diogo Nogueira faz um bom trabalho. Antes ele só representa­va o pai, o João Nogueira, mas agora pegou o próprio caminho. Gosto que ele prima pelo show seco, bonito, bem vestido”

Você leva a Vila Isabel no nome, apesar de ter nascido no interior do Rio de Janeiro, em Duas Barras. Sei que já deve ter escutado essa pergunta algumas vezes, mas o que a Vila representa na sua vida? A “Vila bairro” é o melhor bairro da cidade do Rio de Janeiro. Não tem igual! É um lugar maneiro, onde as pessoas se conhecem e de lá é fácil ir para qualquer lugar. Hoje moro na Barra da Tijuca, eu que moro longe. Já a “Vila escola de samba” é uma menina que eu conheci nova, ajudei a crescer, amadureci junto com ela e herdei o seu nome. A Vila Isabel está para sempre atrelada à minha história, nos misturamos.

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AUTOFICÇÃO Escritor e musicista: sambista carioca lança própria biografia, contada pela conversa de dois personagen­s
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