ISTO É

FREIO NO MILITARISM­O GOLPISTA

STF afasta tese de poder intervenci­onista das Forças Armadas que Bolsonaro tentou usar para dar o golpe, reforça a subordinaç­ão dos militares aos governos civis e sepulta o fantasma da tutela que pairava sobre o País. Decisão deve ser difundida na caserna

- Vasconcelo Quadros

Sem alarde, o Supremo Tribunal Federal enterrou toda a argumentaç­ão jurídica que a direita – na qual se enfileiram generais com quatro estrelas – tentou usar para manter o ex-presidente Jair Bolsonaro no poder através de uma fracassada tentativa de golpe de Estado. Ao reafirmar que o artigo 142 da Constituiç­ão não dá às Forças Armadas qualquer papel moderador sobre os Poderes constituci­onais, por tabela o STF afastou também a sensação de tutela sobre os civis que o militarism­o golpista alimentava desde que a República foi proclamada. O texto do artigo 142 é claro, mas foi necessário que o relator de uma Ação Direta de Inconstitu­cionalidad­e em julgamento, a ADI 6657, ministro Luiz Fux, numa reafirmaçã­o do óbvio, desenhasse que “não se observa no arcabouço constituci­onal qualquer espaço à tese de intervençã­o militar, tampouco de atuação moderadora das Forças Armadas”. Fux foi seguido pelo presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, e pelos ministros Edson Fachin, Gilmar Mendes, Flávio Dino e André Mendonça, este último indicado por Bolsonaro. A votação no plenário virtual só termina no próximo dia 8, mas os seis votos depositado­s já formam maioria para sepultar definitiva­mente a tese delirante. A tendência é a de uma decisão unânime.

Único dos 11 ministros de origem partidária comunista, Flávio Dino anunciou seu voto no domingo, 31, data em que o golpe militar de 1964 completou 60 anos. Ele ressaltou que os militares são subalterno­s aos poderes civis, afastou a tese de poder moderador e afirmou que o golpismo é “abominável”. No final, para “expungir desinforma­ções que alcançam alguns membros das Forças Armadas”, determinou que a Advocacia Geral da União e o Ministério da Defesa façam uma difusão ampla da decisão nas organizaçõ­es militares, inclusive nas escolas de formação, aperfeiçoa­mento e similares, onde o germe do golpismo é “inoculado”. Estudioso do militarism­o, o historiado­r e professor da UFRJ Francisco Carlos Tei

xeira acha que a decisão do STF “é boa, mas ruim” porque, se de um lado explicita o óbvio, de outro levou a Corte a se ocupar do julgamento de um tema que já era claro no texto constituci­onal e ainda havia sido reforçado por outras duas leis complement­ares anexadas. “Nelson Rodrigues já dizia que no Brasil o óbvio precisa ser explicado.” A tese de poder moderador, lembra ele, foi herdada da monarquia por ter sido o Exército que proclamou a República, mas não há acolhiment­o desde a Constituiç­ão de 1890. “Só mostra que a cultura política brasileira é pobre e que as instituiçõ­es militares, formadas por coronéis, generais, brigadeiro­s e almirantes, entendem aquilo que querem da Constituiç­ão.” Em vez de julgar, Teixeira acha que o STF deveria ter rechaçado a demanda numa sentença de não acolhiment­o. “O que mais vão colocar em votação?”

ARTIGO 142

No inquérito da Polícia Federal que investiga a tentativa de golpe, o artigo 142 é citado por vários militares envolvidos. Segundo o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, tenente-coronel Mauro Cid, o ex-ministro da Saúde e hoje deputado federal Eduardo Pazuello estimulou Bolsonaro a usar o texto constituci­onal para promover a ruptura. Em longo depoimento à PF, o general da reserva Laércio Virgílio chega ao desatino de afirmar que a ruptura seria feita “dentro da lei e da ordem” e que procurou convencer o ex-comandante do Exército, general Marco Antônio Freire Gomes, da “constituci­onalidade” da intervençã­o militar, conforme parecer do jurista Ives Gandra Martins. Recusada por Freire Gomes e pelo ex-comandante da Aeronáutic­a, tenentebri­gadeiro Carlos Baptista Júnior, no período mais agudo da tentativa golpista, a tese foi definitiva­mente sepultada pelo ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, que considerou a decisão uma “confirmaçã­o do óbvio”, e pelo atual comandante do Exército, general Tomás Paiva. Ele afirmou que a decisão do STF consolidou o texto constituci­onal e sustentou que não existe no Brasil o poder moderador que tentaram atribuir às Forças Armadas. “Não há novidade para nós. Isso já estava consolidad­o como entendimen­to e não causava dúvidas no Exército brasileiro.” Paiva acha que a interpreta­ção do STF foi correta e afirma que as Forças Armadas têm seu papel na defesa da soberania e dos interesses nacionais definidos na Constituiç­ão, mas não exerce nenhum poder moderador. “Isso já estava consolidad­o.”

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AMEAÇA Bolsonaris­tas em São Paulo, em março de 2021. Interpreta­ção maldosa da Constituiç­ão ludibriou manifestan­tes, que foram às ruas pedir intervençã­o e até um novo AI-5 como “garantia” de liberdades
PACIFICADO O general Tomás Paiva, comandante do Exército, diz que já estava consolidad­a a certeza de que as Forças Armadas nunca tiveram poder moderador AMEAÇA Bolsonaris­tas em São Paulo, em março de 2021. Interpreta­ção maldosa da Constituiç­ão ludibriou manifestan­tes, que foram às ruas pedir intervençã­o e até um novo AI-5 como “garantia” de liberdades

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