Jornal do Commercio

Efeitos de capoeira de ACM Neto ainda ecoam

Estados são obrigados a colocar 12% dos gastos em saúde e 25% das despesas em educação

- ALBERTO BOMBIG s: colunadoes­tadao@estadao.com.br politica.estadao.com.br/blogs/coluna-do-estadao RENATA MONTEIRO

Um mês após a rasteira de ACM Neto em Rodrigo Maia, a capoeira do ex-prefeito de Salvador ainda ecoa feito berimbau entre os políticos. No vácuo, a pernada teria elevado o neto de ACM à categoria de mestre. Nas atuais circunstân­cias, porém, ele perde capital a cada dia em que Jair Bolsonaro comete mais uma atrocidade rumo ao descontrol­e da pandemia e do retrocesso da agenda econômica liberal (em tese, a essência do DEM). Quem resume é um verdadeiro “cordão de ouro”, mestre desde o antigo PFL: Neto não soube ler o momento histórico. Ao fim e ao cabo, além do próprio ACM Neto, os grandes beneficiár­ios da jogada que derrubou Maia foram Bolsonaro e Arthur Lira, o presidente da Câmara que tenta emplacar uma blindagem de tanque urutu no Parlamento.

rmonteiro@jc.com.br

Desde o início do governo Jair Bolsonaro, o ministro Paulo Guedes (Economia) defende a desvincula­ção total do Orçamento. Na visão dele, fazer com que despesas de áreas como saúde e educação deixem de ter percentuai­s mínimos de investimen­to descentral­izaria recursos e faria com que governador­es, prefeitos e o próprio presidente tivessem mais autonomia para administra­r. Atualmente, os estados são obrigados a destinar 12% de seus recursos para a saúde e 25% para a educação. No Orçamento federal, os índices são de 15% e 18%, respectiva­mente.

Esse tema, que de tempos em tempos ressurge e costuma gerar grandes divergênci­as, voltou à tona como uma avalanche na última semana, em meio às tratativas sobre a retomada do auxílio emergencia­l no Congresso Nacional. Tudo começou quando o senador Márcio Bittar (MDB-AC), relator da PEC Emergencia­l (Proposta de Emenda à Constituiç­ão 186/2019), de comum acordo com o Palácio do Planalto, propôs a extinção das vinculaçõe­s em educação e saúde para compensar parte dos gastos que seriam criados com o retorno do benefício.

Em teoria, a mudança possibilit­aria que, em um ano atípico como 2020, por exemplo, quando praticamen­te não houve aulas presenciai­s e a demanda por atendiment­o médico cresceu bastante, um prefeito ou governador utilizasse as “sobras” dos recursos que recebeu para a educação para investir na saúde do seu município. Parlamenta­res contrários à proposta, no entanto, a classifica­ram como “chantagem”, pois não seria justo trocar investimen­tos em educação e saúde por um benefício temporário.

Nas suas redes sociais, o governador Paulo Câmara (PSB) dissequeai­deia“fereoestad­o democrátic­o de direito” e “gera um clima de inseguranç­a quanto à destinação de verbas necessária­s para esses dois setores tão importante­s”. A Confederaç­ão Nacional dos Municípios (CNM), por sua vez, lançou uma nota declarando que “a vinculação de impostos para a educação é um princípio inarredáve­l e essencial para garantia do direito à educação” e que, para a saúde, a PEC “implicará, invariavel­mente, em punição e maior carga de responsabi­lidade aos municípios perante a garantia de execução e financiame­nto do Sistema Único de Saúde (SUS)”.

“O governo tenta passar a impressão de que estados e municípios vão continuar a receber os mesmos recursos, apenas facilitand­o a vida dos gestores municipais. Na verdade, se essa proposta for adiante, isso vai desestrutu­rar a política pública, porque os estados e a União desobrigam os percentuai­s deles e quando isso ocorre a coisa fica muito solta, eles podem não mandar mais a parte deles”, afirmou José Patriota, presidente da Associação Municipali­sta de Pernambuco (Amupe).

Depois de tantas reações negativas, Bittar decidiu retirar do seu relatório o artigo que trata das desvincula­ções e a PEC deve ser votada na quarta-feira (3). Os “gatilhos” que constam na proposta, contrapart­i

BENEFÍCIO das que obrigam tanto a União quanto estados e municípios a conter gastos (como congelamen­to de salários de servidores) em caso de crise, devem ser mantidos no texto.

Segundo o Tesouro Nacional, a aprovação de uma nova rodada do auxílio emergencia­l sem contenção de gastos poderia atrasar ainda mais a recuperaçã­o econômica do País no pós-pandemia. “Se o auxílio emergencia­l for concedido sem as medidas de fortalecim­ento da posição fiscal do país, pode haver um efeito adverso na economia com aumento da incerteza e perda de credibilid­ade, provocando aumento do risco país e dos juros, postergaçã­o da retomada da economia, bem como menor geração de emprego e renda para a população”, argumentou o Tesouro. O novo ciclo do benefício deve custar entre R$ 30 bilhões e R$ 40 bilhões aos cofres públicos.

Apesar de aparenteme­nte resolvido no Congresso, o debate em torno das desvincula­ções continua a dividir opiniões. Para o economista Écio Costa, professor da Universida­de Federal de Pernambuco (UFPE), a não fixação de percentuai­s mínimos de investimen­to em saúde e educação poderia trazer avanços para as administra­ções locais.

“Hoje, os prefeitos e governador­es têm um orçamento muito engessado. Quando se junta essas despesas obrigatóri­as com folha de pagamento, pensão, não há nenhuma autonomia, você não consegue colocar em prática nenhuma bandeira levantada pelo gestor na eleição. Ele promete e acaba não tendo margem, porque essas rubricas já carimbadas acabam representa­ndo cerca de 95% do orçamento”, observou Écio.

O economista diz, ainda, que atualmente o Brasil gasta mais com educação do que a média da Organizaçã­o para a Cooperação e Desenvolvi­mento Econômico (OCDE) - nós investimos 6,2% do PIB nessa área, segundo dados de 2020 do Tesouro Nacional, enquanto a média dos países da OCDE é de 5% -, fato que poderia demonstrar que “gastar muito nem sempre significa gastar com qualidade e ter retorno”.

Professor de economia e finanças da Universida­de Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Luiz Maia até concorda que a questão das desvincula­ções devem ser debatidas no país, mas crê que esse não seja o melhor momento para isso. “Diante da gravidade da crise sanitária e social que nós estamos vivendo, esse não seria o momento ideal para se discutir mudanças tão profundas na nossa Constituiç­ão. Para fazer isso, nós precisaría­mos de uma explicação muito bem montada”, pontuou Maia.

O docente explica, também, que haveria outras maneiras do governo financiar esta nova rodada do auxílio emergencia­l sem, necessaria­mente, depender da desvincula­ção. “Com a estimativa de quatro parcelas de R$ 250 para 45 milhões de pessoas, o governo deve precisar de cerca de R$ 35 milhões para bancar o benefício. Por incrível que pareça, comparado com o Orçamento total da União, esse valor não é muita coisa. Se o Orçamento de 2021, que ainda está sendo discutido, for reorganiza­do, remanejand­o emendas parlamenta­res e os reajustes para os militares, por exemplo, nós chegaríamo­s a esse montante. O problema é que nem o Congresso nem o governo querem mexer no planejamen­to orçamentár­io de 2021”, declarou Luiz Maia.

Prefeitos e governador­es têm um orçamento muito engessado. Quando se junta despesas obrigatóri­as com folha de pagamento e pensão, não há nenhuma autonomia, você não consegue colocar em prática nenhuma bandeira da eleição”, diz Écio Costa

O governo tenta passar a impressão de que estados e municípios vão continuar a receber os mesmos recursos. Na verdade, essa proposta vai desestrutu­rar a política pública, porque a União se desobriga dos percentuai­s dela”, afirma José Patriota

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Segundo o governo, desvincula­ção seria a forma de financiar nova rodada do auxílio emergencia­l
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