Biblioteca na era digital
A instituição liberou obras de domínio público para o Google Livros. Discussão versa sobre outros títulos
Uma das dez maiores bibliotecas do mundo e a maior da América Latina, a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro estuda dar um passo ambicioso para levar seu tesouro ao mundo virtual.
Procurado pelo GLOBO, o Google afirmou que não monetiza as obras digitalizadas pela empresa. Também garante que a biblioteca poderá manter os documentos em seu site, se desejar. E esclareceu que apenas itens em domínio público entrarão no projeto. No passado, o Google enfrentou uma série de processos após convencer bibliotecas a disponibilizar versões digitais de livros protegidos por direitos autorais. Desde a metade dos anos 2000, a empresa vem buscando acervos pelo mundo para enriquecer o Google Livros.
“O conteúdo dos livros gera mais resultados de buscas, o que por sua vez torna o serviço do Google melhor, trazendo mais audiência”, explica Ronaldo Lemos, diretor do Instituto Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.
As cooperações costumam ser acompanhadas de polêmicas. Em 2009, o acordo com a Biblioteca de Lyon, por exemplo, foi chamado de “pacto faustiano” por seus críticos. Na época, falou-se até em “eugenia documental”, pelo fato de ele contemplar alguns tipos de documentos. Além disso, uma cláusula do contrato proibia que estes arquivos aparecessem em outros motores de busca além do Google. Mas o ponto mais sensível é que ele cedia exclusividade comercial dos documentos à empresa. A mesma minúcia contratual apareceu no convênio com a Biblioteca Britânica, em 2011. Como uma reação ao Google Livros, a União Europeia criou, em 2008, a Europeana, plataforma digital que uniu as bibliotecas do continente com o objetivo de preservar suas relíquias em seus domínios.
“O histórico do Google dá margem a suspeitas” diz o historiador Robert Darnton, que virou diretor da Biblioteca de Harvard logo após a empresa digitalizar o acervo da instituição. “Eu recomendaria aos brasileiros serem extremamente cautelosos com qualquer acordo”, alerta.
Mesmo se tratando de obras de domínio público, o Google não estaria impedido de, algum dia, cobrar pelo acesso às suas versões digitais. “É equivalente a cobrar para exibir um filme em domínio público”, diz Sérgio Branco, cofundador do ITS Rio. “A cobrança é pelo serviço prestado. O fato de a obra estar em domínio público não significa que seu acesso deve ser gratuito”.
Mas a BN, por sua vez, admite que uma parceria com o Google aceleraria o processo de digitalização de seu acervo. Em tempos de quarentena, as visitas à sua hemeroteca virtual dispararam (46 milhões de acessos entre janeiro e junho deste ano contra 26 milhões em todo o ano de 2020), mas muitos tesouros ainda não podem ser consultados on-line. A instituição digitalizou menos de um quarto de seu acervo de nove milhões de documentos, incluindo livros, mapas e fotos.
Atualmente, a BN conta com uma equipe de 15 especialistas para a tarefa. Escanear uma obra rara exige cuidados. O processo pode durar semanas, desde a higienização até a catalogação do item, passando pela abertura e posição corretas em que o livro é colocado no scanner. Em termos de infraestrutura, a casa tem o melhor scanner da América Latina, porém, ainda assim é insuficiente diante do volume a ser trabalhado, de acordo com Maria Eduarda Marques.
“O Google possui recursos e equipamentos que nenhuma outra biblioteca tem”, diz a historiadora. “Mas há toda uma preocupação com o ritmo de produção, que não pode ser industrial. É preciso estar atento, no caso de uma parceria, para que este cuidado seja compatível com o nosso”.
Entre os especialistas, há um consenso de que o maior desafio é encontrar espaço seguro para as obras. Sim, armazenamento também é um problema para tesouros digitais. Este ano, hackers invadiram o site da BN e sequestraram temporariamente seus dados, exigindo resgate financeiro; todos os serviços on-line ficaram paralisados por 15 dias. A segurança digital demanda uma atualização contínua de softwares, o que custa caro. A nível nacional, as instituições sofrem com a falta de investimento.
“Sem investimento forte, há um risco muito alto de que parte do que já foi digitalizado pelas bibliotecas do país se perca”, diz Rodrigo Mexas, coordenador do Laboratório de Digitalização de Obras Raras/ICICT/Fiocruz.
“A digitalização é fundamental para países que sofrem com a insuficiência de políticas culturais como o Brasil”, acredita Ronaldo Lemos. Segundo ele, as bibliotecas não devem temer as parcerias com grandes empresas internacionais.
“O acervo que permanece no seu suporte físico está permanentemente ameaçado, de roubo, deterioração e incidentes como incêndios e outras tragédias”, observa ele. “A digitalização é medida emergencial nesse contexto. Ela é igual à vacina: não dá para escolher. Se o poder público não está cumprindo seu dever, nesse caso é melhor que uma empresa privada ao menos faça todo o trabalho antes do perecimento dos acervos.
O ponto nevrálgico da negociação é a questão da exclusividade da comercialização dos documentos