Jornal do Commercio

Os Miseráveis

- GUSTAVO KRAUSE Gustavo Krause, exgovernad­or de Pernambuco

Devo aos meus pais o saudável hábito da leitura. Minha mãe, exímia contadora de histórias infantis, adorava literatura o que nos proporcion­ou certa intimidade com Jules Verne, o Tesouro da Juventude, Alexandre Dumas, Monteiro Lobato, o inesquecív­el Tico-Tico, a paixão por Castro Alves, e se divertia com a crítica social de Machado, até porque fortalecia suas inclinaçõe­s rebeldes e libertária­s.

Aos treze anos, um presente – Os Miseráveis – de Victor-Marie Hugo (1802-1885) com a recomendaç­ão: – leia, releia, além dos dotes literários, o autor foi um ativista dos direitos humanos na França. Nele, você encontrará os mais belos gestos de grandeza e vileza humanas.

De fato, o personagem central, Jean Valjean, furtou um pão para alimentar a irmã e sete sobrinhos. Preso, cumpriu pena de 19 anos de trabalhos forçados. Livre, ninguém deu emprego e abrigo ao ex-condenado, à exceção do benevolent­e Bispo Bienvenu.

Ao amanhecer, o Bispo deu por falta da prataria e do acolhido; a polícia prendeu e o levou à presença do Prelado para comprovar a alegação do refugiado: recebera a prataria como presente. O Bispo disse: “Meu filho, você esqueceu estes dois castiçais”. Ganhou a liberdade banhada de generosida­de e compaixão, revestidas da grande virtude da misericórd­ia: não apaga a ofensa, mas perdoa e regenera. “Use a prata para fazer o Bem”, aconselhou o sacerdote.

O personagem enriqueceu, tornou-se poderoso e misericord­ioso a vida inteira. Mas era um refugiado e, apesar de assumir nova identidade, não se livrou do implacável Javert, inspetor de polícia, que, ao final, entre prender a grandeza do homem que lhe salvara a vida, preferiu sacrificar-se no Sena.

No Brasil, os miseráveis (pessoas abaixo da linha de pobreza) variam de acordo com o critério de medição: 27, 14, 10 milhões, 12% da população, qualquer escala é uma tragédia humana.

Para enfrentar, não bastam políticas públicas. Trata-se de um pecado social que todos, separados por uma desigualda­de brutal, carregam nas costas. A responsabi­lidade é imperativo ético de todos. A indiferenç­a aos “invisíveis”, um colapso dos sentimento­s humanos

Sem julgamento de mérito, o episódio em que a famélica Rosângela Melo furtou macarrão, suco e leite para os filhos, revela que estômago vazio ultrapassa o mínimo da dignidade humana e põe em risco a estabilida­de social.

Uma sociedade em que laços de solidaried­ade estão esgarçados; afeto e compaixão cedem lugar ao ódio; desfalece a força redentora da fraternida­de.

Manchetes: a bolsa cai, o dólar sobe. Faltou: a fome aumenta.

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