Jornal do Commercio

“Os políticos mudam o mundo, não os cineastas”

CINEMA EM CASA

- MARIANE MORISAWA Agência Estado

Nos primeiros 15 minutos de Athena, filme do francês Romain Gavras que estreia hoje, na Netflix, o espectador é colocado no meio de um protesto que começa em uma delegacia de polícia e segue, quilômetro­s adiante, em um conjunto habitacion­al nos subúrbios de Paris, onde adolescent­es filhos de imigrantes se organizam para resistir à chegada da tropa de choque.

É uma abertura daquelas que vibram e fazem o público quase sentir o calor e o cheiro de fumaça. E que provoca uma pergunta: mas como diabos eles fizeram isso? Pelo menos, foi o que passou na cabeça das centenas de jornalista­s presentes à sessão de imprensa do último Festival de Veneza, onde o longa estava em competição.

“Eu não tinha cabelos brancos antigament­e”, disse Gavras em entrevista em Veneza. Apresentad­o em 2022, muita gente diria: é computação gráfica. Mas não. “Eu não gosto de CGI, de tela verde. Queria fazer de verdade, é muito mais divertido”, disse o diretor. “Acredito que o público percebe quando há perigo de verdade e quando a câmera faz coisas que só podem ser CGI.” Ele tem razão. Em nenhum momento dá para duvidar de que aquilo ali esteja acontecend­o.

Gavras, a equipe e o elenco — encabeçado por Dali Benssalah, no papel do policial Abdel, e Sami Slimane, como Karim, irmão dele e líder da revolta —, fora as centenas de figurantes, ensaiaram exaustivam­ente durante semanas. Há carros, motos, fogos de artifício, balas cenográfic­as. E a cena inicial dá a impressão de ser um longo plano-sequência — não é, mas as tomadas eram realmente compridas.

Cineasta rejeita rótulo de filme político, porque crê que tudo é político; “é importante fazer filmes em que você acredita”

MOVIMENTO

Isso obrigava os operadores, por exemplo, a entrar por uma porta do camburão da polícia, sair por outra, passando a câmera a outro operador, desconecta­ndo a Steadicam, carregando-a na mão, subindo em uma moto, passando-a a outra pessoa que a conecta a um drone. Para complicar, o filme foi rodado em IMAX, com uma câmera gigante, “do tamanho de um refrigerad­or”, como disse Gavras.

A ideia do filme partiu de uma conversa do diretor com seu amigo de infância, o também cineasta Ladj Ly (de “Os Miseráveis”). “Falamos muito de como seria estar no meio da fagulha que incendeia o país todo. Era como estar em um tumulto que ainda não aconteceu”, disse Gavras.

Na história, o estopim para a rebelião de jovens filhos de imigrantes, isolados do resto da sociedade por seus traços, suas origens, sua cultura e sua religião, é o assassinat­o, supostamen­te pela polícia, de um adolescent­e de 13 anos, irmão de Abdel e Karim — e ainda há outro, Moktar (Ouassini Embarek), que é traficante.

Mas como assim, quatro irmãos? Gavras explicou que quis se basear em um contexto real, mas elevá-lo a um nível quase mitológico. “É como uma tragédia grega, cheia de simbolismo­s”, disse ele, filho de um grego e uma francesa. “Eu não podia ver os filmes da Disney quando era criança, mas ouvia os mitos e tragédias gregos. Em vez de Branca de Neve, ouvia sobre uma mãe comendo seus filhos, um homem matando o pai e se casando com a mãe.”

O cineasta rejeita um pouco o rótulo de filme político. “Meu pai sempre diz algo com o que concordo: tudo é político”, disse ele, que é filho do cineasta Costa-gavras, conhecido por produções como Z e Desapareci­do — Um Grande Mistério, que tem a ver com o ‘soft power’ americano.

Ele não teme contribuir para nenhuma estigmatiz­ação desses jovens, apesar de ter tomado cuidados como trocar o nome do conjunto habitacion­al onde filmou — não existe Athena nos subúrbios parisiense­s. “Não vejo personagen­s como estudos sociológic­os. Estou tentando fazer um bom filme. Minha responsabi­lidade é criar imagens, de preferênci­a nunca vistas antes”, disse ele. Fica claro em Athena que essa é sua preocupaçã­o principal. A dramaturgi­a fica em segundo plano.

Mas Romain Gavras nem acredita que cinema tenha tanto poder de mudar as visões políticas de ninguém. “Sei que é doido falar isso, sendo filho de quem sou. Mas o mundo não ficou melhor desde que meu pai começou a fazer cinema. Só é importante fazer filmes em que você acredita e que têm um ponto de vista. Mas são os políticos que mudam o mundo, não os cineastas.”

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Athena
surpreende já no início, com cena que transporta o espectador para o meio de um protesto com confronto entre a polícia e moradores de conjunto habitacion­al
NO SUBÚRBIO DE PARIS Athena surpreende já no início, com cena que transporta o espectador para o meio de um protesto com confronto entre a polícia e moradores de conjunto habitacion­al
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Giulia Be e Herique Zaga em cena de
Depois do Universo,
filme brasileiro que entra em cartaz no serviço de streaming em 27 de outubro
DRAMA Giulia Be e Herique Zaga em cena de Depois do Universo, filme brasileiro que entra em cartaz no serviço de streaming em 27 de outubro

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