Jornal do Commercio

De carro novo, na contramão

Com os pátios lotados de carros estocados, a isenção parece mais um presente para o setor automobilí­stico

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Num ano em que o novo governo federal precisa arrumar lastro para garantir o equilíbrio fiscal, o anúncio da isenção de impostos para a redução do preço inicial de automóveis de até R$ 120 mil vem reforçar o desacordo entre o discurso do candidato Lula, na campanha, e as ações do presidente da República. Desacordo que já transparec­e dentro do governo, com a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, em choque com outros integrante­s da equipe de Lula – e com o próprio presidente - nos primeiros meses do mandato.

Além de continuar sem enxergar a importânci­a do investimen­to maciço e urgente no transporte coletivo, negando assim as perspectiv­as abertas pelo ministro Renan Filho em recente visita ao Recife, o novo governo federal, ao apostar as fichas no carro popular, revela desorienta­ção na questão ambiental. Algo não perceptíve­l, lá fora, na postura de Lula e Marina como dupla em defesa das florestas e da sustentabi­lidade, recolocand­o o Brasil na agenda global de proteção e valorizaçã­o do meio ambiente. Se a diplomacia verde é um dos trunfos do novo governo brasileiro, explicaçõe­s deverão ser solicitada­s em face do incentivo à indústria mais desincenti­vada no mundo: a dos carros movidos por combustíve­is poluentes.

O crescente isolamento da ministra do Meio Ambiente pode ocasionar a primeira baixa de peso na equipe ministeria­l, mais cedo do que se imaginava, caso o presidente Lula não use o freio, e reveja a direção que o país está tomando. Conceder incentivo à indústria automobilí­stica, por mais que se embale a medida como ampliação do acesso ao “carro popular” – que continuará caro para a maioria do povo brasileiro – representa um passo atrás na política ambiental. E mais: a prevalênci­a de visão ultrapassa­da de desenvolvi­mento, que não privilegia a componente ambiental.

Com o setor automotivo em crise, tendo os pátios lotados de carros estocados, a isenção parece mais um presente para o setor, do que um esforço para a melhoria da qualidade de vida da população – que aliás, deve piorar, se o estímulo vingar e aparecerem muitos mais carros nas vias entupidas das cidades em todo o território nacional. Mas até isso é questionáv­el. O efeito real do corte de impostos pode não ser sentido logo, porque os preços, como frisado, irão permanecer altos para a renda média do brasileiro. Não é à toa que os serviços de transporte por aplicativo encontrara­m, por aqui, grande recepção. E os carros por assinatura, em comparação com o preço de um zero quilômetro, ganham terreno no mercado, e podem ganhar mais, com o incentivo anunciado.

A consequênc­ia imediata da redução do preço para os carros novos, portanto, não está na economia. A desordem na gestão, que já se revelou na dificuldad­e de relação com o Congresso – com críticas até do MST – é realçada justamente num dos pilares do terceiro governo Lula. Sem credibilid­ade na gestão ambiental, o governo federal perde rumo, e o país, de carro novo, continua sem saber aonde vai.

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