Jornal do Commercio

Um futuro incerto

...O que esperar de nossos professore­s em termos de fazer com que seus alunos não se vejam exclusivam­ente pelos olhos do sistema aos quais pertencem?

- FLÁVIO BRAYNER Flávio Brayner, professor Emérito da UFPE

Fui convidado pelo reitor Alfredo Gomes (UFPE) para fazer uma intervençã­o na reunião nacional da ANDIFES (Associação Nacional dos Dirigentes de Instituiçõ­es Federais de Ensino Superior) sobre a tema “Formação do Professor”. Faço, a seguir, um pequeno resumo das preocupaçõ­es que ali manifestei.

Há, a meu ver, sinais, neste meu presente universitá­rio, que parecem apontar para futuros que reputo indesejáve­is. E o mais indesejáve­l deles –para mim- é a transforma­ção da universida­de de um lugar do “como pensar” em um outro, o do “como fazer”: receio que seja sobre a dominação hegemônica da “técnica” e orientada por exigências mercadológ­icas que está sendo reconstruí­da a instituiçã­o universitá­ria. A questão inicial, assim, pode ser esta: como é possível conciliar competitiv­idade, performanc­e, ranqueamen­to, empreended­orismo e resultados mensurávei­s com “universida­de solidária, consciente, crítica, democrátic­a, pública e socialment­e comprometi­da” num projeto de formação de professore­s? Quando vemos ou ouvimos o discurso ao nosso redor, a respeito de ranqueamen­to, inovação, competitiv­idade, produtivid­ade, gestão, governança, produção, negócios..., denotando e conotando, com uma linguagem nova, a construção de uma outra realidade institucio­nal (mudam-se as palavras para que o sentido que atribuímos às coisas possam também mudar) é porque algo de importante aconteceu e que não se trata simplesmen­te de “adequar a universida­de às exigências dos novos tempos”: trata-se de criar este “novo tempo” e apresentá-lo, finalmente, como resultado de uma evolução natural. Há, pois, uma revolução em curso: a que instalará a distopia do homem-recurso dispensáve­l, a que ameaça de eliminar do cenário universitá­rio a resistênci­a crítica, uma vez que ciência “objetiva e neutra” não é objeto de debate público. Mas, se o pensar é exatamente aquilo que interrompe o continuum da vida, que nos retira da ordem imediata do mundo, dos automatism­os ideológico­s das respostas, do encadeamen­to causa-efeito..., para suspender, por um instante, nossas certezas habituais e, com isto, permitir o exercício do julgamento, só possível na presença partilhada ou confrontad­a com a pluralidad­e de outros pontos de vista, então, uma Universida­de da mensuração e do ranqueamen­to é uma Universida­de que não pensa mais!

Quando ouço alguns de meus colegas afirmarem que ao tríptico “Ensino, Pesquisa e Extensão” deve ser acrescenta­do um quarto -“Negócios”é porque aquela ideia de uma Universida­de como um lugar, ao mesmo tempo, perto e distante da vida ordinária (perto porque é dela, desta vida, que retira sua matéria reflexiva; distante, porque pensar e teorizar implicam distanciam­ento) se deixa invadir e colonizar pelo ambiente de negócios é porque a distância necessária para se “refletir sobre o quê nos acontece” (H. Arendt) foi suprimida. O que reafirma a condição indesejáve­l, a meus olhos, de uma UNIVERSIDA­DE UNIDIMENSI­ONAL (Marcuse).

E mesmo que supostamen­te ela “pensasse”, este pensar teria perdido seu predicado essencial: a autonomia. E é aqui onde se abrem as portas da ideologia meritocrát­rica, cuja etimologia não explica que contraband­os semânticos foram introduzid­os no seu uso atual. Hoje o discurso meritocrát­ico-gestionári­o, esteio ideológico da “produtivid­ade” acadêmica, cumpre o papel inverso: ele restaura hierarquia­s, qualifica e desqualifi­ca pessoas em função de critérios não substantiv­os, distribui privilégio­s, seleciona “talentos” e, no horizonte, reabilita uma ordem aristocrát­ica: uma Universida­de assim representa­ria o fim de minha própria condição pedagógica.

Mas não posso terminar sem deixar de apresentar algumas questões que eu mesmo não sei como responder:

a)nós acreditamo­s que a chamada “consciênci­a crítica” é fator fundamenta­l da formação do professor. Mas na sociedade do hiper-consumo não é a consciênci­a que é manipulada pela ideologia, mas o desejo, que é infraconsc­iente. Como formar o professor para se contrapor, pedagogica­mente, à manipulaçã­o do desejo?

b)num mundo sem utopias e que se volta contra o passado, seja como iniciativa de reparação, seja de modificaçã­o; em que a família se transformo­u e o espaço público (cidadania) está em crise, o que acontece com aquela posição do professor na “encruzilha­da”?

c)e, finalmente, num momento como este, marcado pelo hegemonia neoliberal, em que está em jogo a formação de uma nova subjetivid­ade auto-empreended­ora - o sujeito como uma empresa de si- o que esperar de nossos professore­s em termos de fazer com que seus alunos não se vejam exclusivam­ente pelos olhos do sistema aos quais pertencem?

 ?? MARCELLO CASAL JR/AGÊNCIA BRASIL ?? “Como é possível conciliar competitiv­idade, performanc­e, ranqueamen­to, empreended­orismo e resultados mensurávei­s com “universida­de solidária, consciente, crítica, democrátic­a, pública e socialment­e comprometi­da” num projeto de formação de professore­s?
MARCELLO CASAL JR/AGÊNCIA BRASIL “Como é possível conciliar competitiv­idade, performanc­e, ranqueamen­to, empreended­orismo e resultados mensurávei­s com “universida­de solidária, consciente, crítica, democrátic­a, pública e socialment­e comprometi­da” num projeto de formação de professore­s?

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