A defesa da democracia e o perigo da inversão discursiva
E que nunca se perca de vista o essencial, que é a proteção da coluna democrática, para que o rolo compressor da história não nos atropele em massa...
Falando à revista eletrônica Conjur (11/2/2024), Lênio Streck ponderou que a constante das críticas ao Ministro Alexandre de Moraes, do STF, periga deixar em segundo plano o sequencial que resvalou no levante do 8 de janeiro de 2023, o que, na percepção do referido autor, basta para acionar a luz amarela no observatório republicano.
O ponto de partida é simples: o comportamento desassombrado do Ministro no enfrentamento do saudosismo ditatorial, desde o aspecto do combate às fake news ao tema do voto eletrônico ao debate em torno da responsabilização dos implicados no 8/1/23, vem nutrindo, sem reações proporcionais, um movimento através das redes sociais tendente a reescrever os eventos que levaram àquele domingo, vitimizando os conspiradores.
Em uma das mais recentes páginas escritas na crônica do caso, o Ministro autorizou a Polícia Federal a focar em uma série de suspeitos “graúdos” de engendrar um golpe de Estado que impedisse a materialização do resultado do processo eleitoral presidencial de 2022, para o quê proibiu o contato entre investigados, inclusive, por meio de seus advogados. Tal item da decisão causou, como vem causando, uma imensa controvérsia.
De fato, não há como entender de outra forma o quadro resultante senão como de interferência da toga na liberdade de trabalho do advogado, ainda que se consigne estar diluída a determinação em uma decisão que contém mais de uma centena e três dezenas de páginas e uma fila indiana de comandos.
Simpatias ou antipatias à parte no contexto dessa narrativa, o fato é que, se, de um lado, a queixa da advocacia ante os obstáculos amargados não é picuinha, lado outro, não pode ser enxergada por lentes de grau vencido, a ponto de tornar-se a personagem principal em uma apuração de história de detetive que revela crimes gravíssimos, enfeixados na tentativa de abolição violenta do Estado de Direito.
É tempo de compreender que excessos acontecem na atividade humana, que juízes não são criaturas infalíveisequeadvogadosnãosão forças predispostas a protelar, bem assim que equívocos merecem corrigenda; no entanto, nada ofusca a seriedade da maquinação desmascarada, que, por um triz, não implodiu a república e fez letra morta a Constituição de 1988. Cito, de novo, Lênio Streck: “O receio é exatamente essa inversão discursiva. O principal fica obscurecido pelo secundário. Esquece-se a razão ou as razões que levaram a tudo isso”.
A expressão a ser invocada é “democracia defensiva”. Liberdades e direitos assegurados pela Constituição não podem ser invocados com a intenção de colocar sob ameaça o próprio ambiente civilizacional que dá suporte a essas liberdades e direitos. Tome-se o exemplo alemão do século XX. Hitler chegou pelas vias democráticas ao cargo de chanceler, e, com a morte do presidente vonhinderburg,concentrou poderes, dando início ao Terceiro Reich, que levaria à Segunda Guerra Mundial. Encerrado o conflito, a Alemanha precisou criar uma Constituição, agora de caráter defensivo, exatamente para impedir “recaídas” no futuro.
Dentro dessa mesma visão, parece justo o reconhecimento ao Ministro Alexandre de Moraes, quando afirma, por exemplo, que a Constituição Cidadã não permite “o uso sem limites de determinadas liberdades para que a própria democracia seja rompida”; que “não é de hoje que nenhum dos direitos fundamentais é absoluto”; que “há limites individuais e coletivos no sentido da prevalência do
Estado Democrático de Direito” (17/08/2023); e que “a democracia não suportará mais a ignóbil política de apaziguamento, de ‘deixa pra lá’, de ‘vamos aceitar que eles podem melhorar’, (…) fracassada (…) que foi [quando] amplamente afastada na histórica tentativa de acordo de Chamberlain com Hitler” (01/02/2023).
Dito reconhecimento, porém, não é um salvo-conduto. Nem o tema central. Eis o xis da questão. Vale manter um olho sempre no gato e o outro sempre na missa. E que nunca se perca de vista o essencial, que é a proteção da coluna democrática, para que o rolo compressor da história não nos atropele em massa, quando, então, será aí sim o fatídico “arrebatamento” que se tornou a celeuma do carnaval baiano desse ano.