Jornal do Commercio

A defesa da democracia e o perigo da inversão discursiva

E que nunca se perca de vista o essencial, que é a proteção da coluna democrátic­a, para que o rolo compressor da história não nos atropele em massa...

- GUSTAVO HENRIQUE DE BRITO ALVES FREIRE Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado

Falando à revista eletrônica Conjur (11/2/2024), Lênio Streck ponderou que a constante das críticas ao Ministro Alexandre de Moraes, do STF, periga deixar em segundo plano o sequencial que resvalou no levante do 8 de janeiro de 2023, o que, na percepção do referido autor, basta para acionar a luz amarela no observatór­io republican­o.

O ponto de partida é simples: o comportame­nto desassombr­ado do Ministro no enfrentame­nto do saudosismo ditatorial, desde o aspecto do combate às fake news ao tema do voto eletrônico ao debate em torno da responsabi­lização dos implicados no 8/1/23, vem nutrindo, sem reações proporcion­ais, um movimento através das redes sociais tendente a reescrever os eventos que levaram àquele domingo, vitimizand­o os conspirado­res.

Em uma das mais recentes páginas escritas na crônica do caso, o Ministro autorizou a Polícia Federal a focar em uma série de suspeitos “graúdos” de engendrar um golpe de Estado que impedisse a materializ­ação do resultado do processo eleitoral presidenci­al de 2022, para o quê proibiu o contato entre investigad­os, inclusive, por meio de seus advogados. Tal item da decisão causou, como vem causando, uma imensa controvérs­ia.

De fato, não há como entender de outra forma o quadro resultante senão como de interferên­cia da toga na liberdade de trabalho do advogado, ainda que se consigne estar diluída a determinaç­ão em uma decisão que contém mais de uma centena e três dezenas de páginas e uma fila indiana de comandos.

Simpatias ou antipatias à parte no contexto dessa narrativa, o fato é que, se, de um lado, a queixa da advocacia ante os obstáculos amargados não é picuinha, lado outro, não pode ser enxergada por lentes de grau vencido, a ponto de tornar-se a personagem principal em uma apuração de história de detetive que revela crimes gravíssimo­s, enfeixados na tentativa de abolição violenta do Estado de Direito.

É tempo de compreende­r que excessos acontecem na atividade humana, que juízes não são criaturas infalíveis­equeadvoga­dosnãosão forças predispost­as a protelar, bem assim que equívocos merecem corrigenda; no entanto, nada ofusca a seriedade da maquinação desmascara­da, que, por um triz, não implodiu a república e fez letra morta a Constituiç­ão de 1988. Cito, de novo, Lênio Streck: “O receio é exatamente essa inversão discursiva. O principal fica obscurecid­o pelo secundário. Esquece-se a razão ou as razões que levaram a tudo isso”.

A expressão a ser invocada é “democracia defensiva”. Liberdades e direitos assegurado­s pela Constituiç­ão não podem ser invocados com a intenção de colocar sob ameaça o próprio ambiente civilizaci­onal que dá suporte a essas liberdades e direitos. Tome-se o exemplo alemão do século XX. Hitler chegou pelas vias democrátic­as ao cargo de chanceler, e, com a morte do presidente vonhinderb­urg,concentrou poderes, dando início ao Terceiro Reich, que levaria à Segunda Guerra Mundial. Encerrado o conflito, a Alemanha precisou criar uma Constituiç­ão, agora de caráter defensivo, exatamente para impedir “recaídas” no futuro.

Dentro dessa mesma visão, parece justo o reconhecim­ento ao Ministro Alexandre de Moraes, quando afirma, por exemplo, que a Constituiç­ão Cidadã não permite “o uso sem limites de determinad­as liberdades para que a própria democracia seja rompida”; que “não é de hoje que nenhum dos direitos fundamenta­is é absoluto”; que “há limites individuai­s e coletivos no sentido da prevalênci­a do

Estado Democrátic­o de Direito” (17/08/2023); e que “a democracia não suportará mais a ignóbil política de apaziguame­nto, de ‘deixa pra lá’, de ‘vamos aceitar que eles podem melhorar’, (…) fracassada (…) que foi [quando] amplamente afastada na histórica tentativa de acordo de Chamberlai­n com Hitler” (01/02/2023).

Dito reconhecim­ento, porém, não é um salvo-conduto. Nem o tema central. Eis o xis da questão. Vale manter um olho sempre no gato e o outro sempre na missa. E que nunca se perca de vista o essencial, que é a proteção da coluna democrátic­a, para que o rolo compressor da história não nos atropele em massa, quando, então, será aí sim o fatídico “arrebatame­nto” que se tornou a celeuma do carnaval baiano desse ano.

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ALEJANDRO ZAMBRANA/TSE Ministro Alexandre de Moraes, do STF

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