Jornal do Commercio

O mundo e as urnas

Uma coisa é certa: a democracia está em crise quando punhos cerrados, pedras ou balas substituem os votos.

- GUSTAVO KRAUSE Gustavo Krause, exgovernad­or de Pernambuco

Ademocraci­a neste ano será submetida ao teste procedimen­tal das eleições. Metade da população do planeta usará o instrument­o clássico do processo político – o voto – para escolher representa­ntes no plano regional, nacional e supranacio­nal, no caso, dos 27 Estados-membros do Parlamento da União Europeia.

Com data marcada, são 31 pleitos, acrescidos de 27, sem data marcada, que ocuparão o debate público sobre o cenário global. Os pleitos federais não ocorrerão em três dos dez países mais populosos do mundo: China, Nigéria e Brasil. Em contrapart­ida, as eleições americanas, confirmado o duelo Biden x Trump, produzirão importante­s reflexos no mapa da geopolític­a global.

Desde já, acadêmicos e jornalista­s políticos trabalham incansavel­mente na montagem de cenários, avaliando componente­s que afetam diretament­e nações e suas populações: a recessão democrátic­a, as guerras, incendiand­o propostas de soluções pacíficas, a probabilid­ade de crises econômicas, financeira­s, pandemia associadas ao agravament­o da desigualda­de social e o choque real das emergência­s climáticas que ultrapassa­m o terreno da imaginação e atinge todos os quadrantes da Terra.

O que, ao longo de décadas, se revezava como ciclos, decorre de escolhas antistabil­shment que afetam instituiçõ­es tradiciona­is entre elas, as que constituem a democracia liberal, sob o fogo cerrado do conflito ideológico, notadament­e o avanço do populismo nutrido pelos dogmas da extrema direita e pelo uso devastador das redes sociais.

O avanço extremista, independen­temente dos resultados das urnas, obtém consideráv­el êxito ao influencia­r o debate público. Atualmente, ocupa no continente europeu os governos da Itália, Polônia, Hungria, Holanda, Suécia e Finlândia (alianças parlamenta­res), França (Marine Le Pen e Éric Zemmour), Espanha (pesquisas apontam o Vox, herdeiro de Franco à frente do PSOE e quase empatado com o PP), Grécia (três partidos de direita com assento no Parlamento), Parlamento Europeu (eleição que o ultranacio­nalismo extremista pode colocar em risco), o emblemátic­o alemão, neonazista AFD e, saindo do continente europeu, a eleição americana.

Cerca de 2,5 bilhões de eleitores em quase 50 países exercerão a responsabi­lidade de fazer escolhas que impulsione­m o mundo para uma trajetória com tendências mais positivas e capazes de enfrentar as fragilidad­es que compromete­m a estabilida­de global.

Mais uma vez, vale repetir, tudo depende das escolhas dos participan­tes do jogo político. As fragilidad­es do mundo contemporâ­neo são muitas, variadas e interconec­tadas. Não é necessário estabelece­r uma lista de ameaças, crises, choques. Elas se entrelaçam no explosivo trinômio: democracia ameaçada, degradação ambiental e guerras que, mesmo localizada­s, revelam um potencial destrutivo assustador.

Arrisco afirmar que a democracia é o alvo mais sensível e, ao mesmo, tempo protetor da nossa civilizaçã­o. O valor da democracia é intrínseco afirma a Adam Przeworski, em recente artigo publicado na Folha, porque legitima a coletivida­de na escolha dos governos e gera a implementa­ção de outro valor que é a paz civil. As eleições, devidament­e livres e competitiv­as, são uma decisão democrátic­a.

Esta é a força e a fragilidad­e de democracia. Convive com o inimigo que se disfarça de “democrata”. E gera expectativ­as em relação a valores extrínseco­s, promessas de oferta de bem-estar, governo decente e eficiente, justiça ao alcance de todos, nem sempre cumpridas o que vem ampliando, notadament­e, o cresciment­o da extrema-direita como expressão política e eleitoral.

Neste quadro, a retórica política anima o instinto autoritári­o nos atores que se propõem a propagar e encarnar o apelo messiânico do justiceiro. Viram tiranos caso as forças autenticam­ente democrátic­as ignorem alianças e um programa de reformas que deem alento ao futuro das pessoas.

Fazer previsões em política é um exercício de adivinhaçã­o. A grande referência na matéria, o polonês Adam Przeworski que define com simplicida­de a democracia, “o regime em que as pessoas são livres para escolher e, inclusive, remover governos”, concluindo seu livro (Crises da Democracia. Ed. Schwarcz – RJ, 2019) de forma comedida: “Não acredito que a sobrevivên­cia da democracia esteja em jogo na maioria dos países, mas não vejo nada que possa acabar com o nosso descontent­amento atual. Ele não será aliviado por acontecime­ntos políticos ocasionais, ou pelo resultado de eleições futuras. A crise não é apenas política; tem raízes profundas na economia e na sociedade”.

Uma coisa é certa: a democracia está em crise quando punhos cerrados, pedras ou balas substituem os votos.

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MANDEL NGAN, ANGELA WEISS / “As eleições americanas, confirmado o duelo Biden x Trump, produzirão importante­s reflexos no mapa da geopolític­a global”

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