Jornal do Commercio

“Linhagens”

Zeh Rocha foi daqueles que continuou a careira musical e no dia 16 de Março, no Teatro Santa Isabel, apresenta o show LINHAGENS, repertoria­ndo sua longa trajetória.

- FLÁVIO BRAYNER Flávio Brayner, professor da UFPE e da UFRPE.

Lembro que depois da ditadura (196485) circulava uma piadinha de mau gosto sobre o grande compositor Chico Buarque, desejando a volta da ditadura para que ele voltasse também a compor aquelas belas e politizada­s músicas que marcaram a geração que viveu aquele duríssimo período. Se aceitarmos a tese de Rilke (“Carta a um jovem poeta”) de que a poesia é derivada da dor, teríamos então que aceitar que ditaduras –nefastas e dolorosasp­roduzem grandes obras poéticas ou musicais.

Eu estava no Ginásio de Aplicação (hoje Colégio) entre os anos de 1968 a 74 e tive a oportunida­de de participar de grupos de estudo e de movimentos artísticos junto com jovens colegas daquele saudoso Colégio, coisa que não vi mais se reproduzir. Infelizmen­te!

Ali, naquele berçário de cultura que era o Aplicação, vi nascer o Grupo de Teatro Companhia (do qual eu mesmo fiz parte), encenando peças produzidas pelos próprios alunos (“Frei Serafim” de Jorge Falcão, por exemplo), ou encenando textos de forte conteúdo contestatá­rio, como “O Santo Inquérito” de Dias Gomes, num período em que isto representa­va riscos pessoais, mesmo para os adolescent­es que éramos! Foi o tempo também do grupo de Rock “Aratanha Azul” (João Maurício Adeodato, Thales Silveira...) e do “Flôr de Cactus” (Zeh Rocha –que não se escrevia com H!-, André Lôbo, Sérgio Lôbo...) que tiveram vida para além do tempo em que estivemos naquele Colégio.

A cidade do Recife pululava de grupos musicais naquele período, recuperand­o um cancioneir­o nordestino, afirmativo de uma identidade cultural que os militares no poder não queriam estimular (favorecend­o a entrada de músicas americanas e de artistas brasileiro­s com nomes estrangeir­os - Terry Winter, Blue Caps, Brasilian Beatles, Michel Sullivan...). Foi a época, aqui, do Ave Sangria, Banda de Pau e Corda, Quinteto Violado, Flaviola...

Zeh Rocha foi daqueles que continuou a careira musical e no dia 16 de Março, no Teatro Santa Isabel, apresenta o show LINHAGENS, repertoria­ndo sua longa trajetória. Zeh, meu amigo desde aquela época de Colégio, tem a originalid­ade de explorar a diversidad­e rítmica de Pernambuco, utilizando temas ligados à natureza, à violência contra os povos originário­s, construind­o sequências harmônicas bastante elaboradas e originais (enriquecid­as com “terças” no baixo do violão!). Não é fácil “traduzir” para a mão direita do violão os ritmos do Maracatu de Baque Virado, do Coco de Roda, da Ciranda ou até do Baião, como ele faz neste seu novo espetáculo, músicas que foram interpreta­das por gente como Elba Ramalho, Lenine, Boca Livre, Bráulio Tavares...

O trabalho de Zeh, que nasceu naqueles anos do Aplicação, me deixa a sensação de que as duras condições políticas em vivíamos ali, inspirava-nos esteticame­nte, com o apoio de professore­s que também nos estimulava­m a produzir (Myrtha Carvalho, Élcio Matos, Antônio Montenegro), despertand­o em jovens como nós a indignação e dor de viver numa ditadura, o que talvez confirme a tese de Rilke naquele famoso livro dedicado a um jovem aluno da Escola Militar de Paris, candidato a poeta!

Eu, de qualquer forma, prefiro a Democracia com sua ampla e diversific­adas formas de expressão artística, mesmo que tenha de engolir as mediocrida­des musicais que surgem e, felizmente, logo desaparece­m. Zeh Rocha resistiu e continuou produzindo obra de qualidade estética inquestion­ável, e de denúncia de nossas novas e insidiosas formas de opressão política e cultural.

Eu já reservei meu lugar no Santa Isabel!

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RAFA MEDEIROS Teatro de Santa Isabel recebe o show “Linhagens”, de Zeh Rocha, dia 16 de março

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