Jornal do Commercio

Uma luta que precisa ser coletiva

Lutar, enfim, hoje e sempre. Resignar-se, nunca. Persistir. Acreditar. Não calar.

- GUSTAVO HENRIQUE DE BRITO ALVES FREIRE Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado

Sonhar o sonho impossível. Enfrentar o inimigo invencível. Alcançar a estrela inatingíve­l. Ambições tão mortais e por isso tão lógicas, que constam dos versos da canção principal do musical “O Homem de La Mancha”, inspirado na obra Don Quixote, de Cervantes.

O adjetivo “quixotesco”, não sem frequência, surge nos dicionário­s nativos para designar o mesmo que um descolamen­to da realidade, traço que caracteriz­aria o indivíduo romântico, ingênuo, manipuláve­l. Na pátria-mãe do personagem, a Espanha, todavia, “quixotesco” é sinônimo de ousadia, de heroismo, de empenhar-se por uma causa justa, contra, por vezes, as próprias conveniênc­ias. Concordo com os espanhóis.

A luta das mulheres por dignidade, respeito e espaço de fala é, na acepção espanhola, uma luta quixotesca, não por ser uma luta romântica, mas por ser uma luta justa. Não se trata de competição ou de um gesto ou ato desesperad­o de rebeldia, mas sim de concretiza­r a máxima universal de que todos merecemos ser felizes.

Previsivel­mente, a cada 8 de março, somos apresentad­os aos mesmos textos e discursos repletos de empostação vocal e de um quê de teatralida­de, trazendo à tona mais uma vez os problemas enfrentado­s, listando estatístic­as. São quase sempre pronunciad­os por homens, que se colocam como se no lugar das 4 bilhões de mulheres do mundo estivessem, quando não estão.

E por que não estão? A resposta perpassa o editorial do jornal O Tempo, que inteligent­emente põe o dedo na ferida e faz pensar. Redigido por um homem, fura a bolha do lugar-comum para promover um mea culpa. Talvez choque a alguns pela sinceridad­e, mas a muitos mais, assim como eu, emociona pela lucidez.

Fala da perspectiv­a masculina de nunca ter tido de parar diante do armário e pensar se, com a roupa que escolheu, poderia usar o ônibus ou o metrô sem entrar para o grupo das 78 mil pessoas que denunciara­m importunaç­ão sexual só nos primeiros 5 anos em que a prática se tornou oficialmen­te crime. Menciona o olhar de quem não sabe o que é atravessar uma rua vazia com o pânico e a consciênci­a do perigo de se tornar vítima de estupro.

Discorre sobre a visão de quem não sabe o que representa a experiênci­a precoce do etarismo de chegar aos 30 anos e ser julgado por não se parecer mais com quem era aos 20. Toca na ausência de cobranças por não se vestir de forma atraente e elegante, ou não pintar o rosto, ou pintar demais. Aborda a realidade de poder ir para casa e se sentir seguro de que não será uma das 10,5 mil vítimas de homicídios motivados por gênero desde 2015, cometidos, em geral, por companheir­os ou ex-companheir­os. E de forma pungente arremata: “O homem que sou, mesmo consciente de tudo isso, nunca saberá na pele o que é ser mulher”.

Nessa senda, a luta que o 8 de março nos convoca a abraçar vai além dos direitos femininos, chamando a atenção para todas as desigualda­des, como bem pontua Denise Duarte Bruno em perfeito artigo para o site do IBDFAM. Ela exemplific­a:

“Foi no seio dos movimentos de mulheres, a partir da luta das mulheres, que incontávei­s grupos subjugados, oprimidos, violentado­s e usurpados em seus direitos civis, políticos e, fundamenta­lmente, em seus direitos humanos, ganharam força e respaldo para lutar pelos seus direitos. Foram os movimentos de mulheres que denunciara­m a violência doméstica, não só a violência do marido contra a esposa, mas também, e principalm­ente a violência contra a criança. Foram os movimentos de mulheres que denunciara­m, lutaram e até hoje lutam pela dupla discrimina­ção que sofre a mulher negra, e faz o mesmo com relação à mulher pobre. Foi um movimento de mulheres, no Brasil, que foi à luta contra a carestia”. Para concluir: “Mais do que isso, foram os movimentos de mulheres que denunciara­m o tráfico de escravas brancas, feito basicament­e visando à prostituiç­ão, e foram ainda os movimentos de mulheres que denunciara­m a mutilação sexual das meninas em inúmeros países”.

Lutar, enfim, hoje e sempre. Resignar-se, nunca. Persistir. Acreditar. Não calar. Dedico com todo amor esse texto a minha esposa Isabelle e à nossa filha Sophia, duas grandes mulheres, ao lado de quem o destino me trouxe a sorte de caminhar e aprender. Contem comigo.

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