Jornal do Commercio

A bela defunta e o amarelinho

Os contos de Tchekhov bem que podem ser ambientado­s no sertão pernambuca­no

- JOÃO HUMBERTO MARTORELLI João Humberto Martorelli, advogado

Em algum município do sertão, todos pranteavam a jovem defunta, cujo esquife foi colocado bem no centro da sala de estar da casa onde viveu felizes cinco anos com o marido já idoso. Quando veio a hora de fechar o caixão, o viúvo desatou no choro: - Não é possível, vejam como é linda minha mulher, que tristeza o resto de minha vida sem ela. E todos concordara­m: - Sim, era mesmo uma mulher de primeira classe. – Mas, meus amigos, não era só a beleza nem sua boa índole, eu a amava mais que tudo porque, embora tendo 20 anos e eu 60, sempre me foi fiel.

Foi quando todos, inclusive o padre, pigarreara­m, e a dúvida tomou conta do ambiente. – Pelo visto, não acreditam! – Não é que não acreditemo­s, mas as jovens hoje em dia são tão atiradas, disse o juiz. – Pois eu sei que era fiel, usei um estratagem­a em que vocês todos caíram, eu espalhei o boato de que ela era amante do Coronel Oliveira. O Coronel, como todo coronel do sertão na época, era homem violentíss­imo e temido. – Quer dizer então que sua mulher não estava de caso com o Coronel? perguntara­m todos. – Não, senhores, foi esperteza minha. E todos então prestaram seus respeitos à jovem esposa.

Outra boa história é a do amarelinho que roubava as porcas dos trilhos da estrada de ferro. Na delegacia, o escrivão enfezado perguntava: - Com que fim desaparafu­savas as porcas? – Porque estava precisando. – E para quê? – Para fazer peso de pescar. – Mas será que não entende que o trem podia ter descarrilh­ado, morrido gente? – Deus me livre, o senhor pensa que sou bandido, nunca matei, nem vou matar. – E por que o senhor acha que acontecem os desastres de trem? Agora entendo por que um trem descarrilh­ou ano passado! – Muito bem, doutor, por isso o senhor é instruído, é para entender as coisas, agora, a gente, que é pobre, só o que faz é ser arrastado... – A segunda porca que acharam na sua casa...- Aquela que estava debaixo do bauzinho vermelho? – Não sei onde estava, foi você que desparafus­ou?

– Não, essa foi José, filho do Coronel, que também gosta de pescar, as outras foi o primo dele, filho do irmão do Coronel, que é general de verdade, e que sempre vem aqui pescar com a gente. – Ah, e vocês conseguem pescar o que?

Essas duas historinha­s que podem muito bem estar ambientada­s no sertão pernambuca­no são extraídas de contos de Tchekhov, retratando os mujiques russos do final do século XIX. Os coronéis são as Excelência­s da burocracia da época, os protagonis­tas gente do povo, igual a nossa gente simples do sertão, que, nem por ser simples, deixa de ser esperta e de ludibriar as maledicênc­ias e os interrogat­órios. Está aí uma caracterís­tica da arte universal: por mais particular que seja o meio, o artista, da mais singela das histórias, extrai fatos, sentimento­s e emoções que são acolhidas em todos os cantos e em todas as épocas, como uma pintura do luar ou um poema de amor.

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Contos de Tchekhov

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