Jornal do Commercio

Havia um Recife!

Havia - como naquele poema de Drummond- um Recife, havia um amanhecer, havia uma flor no jardim, havia uma criança que brincava...

- FLÁVIO BRAYNER Flávio Brayner , professor emérito da UFPE e visitante da UFRPE

Das cenas propriamen­te “pernambuca­nas” que marcaram o Golpe civil-militar-empresaria­l de 64, duas nunca saíram da minha memória: aquela do Governador Miguel Arraes sendo levado num Fusca para o IV° Exército, depois de ter recusado a proposta de “renúncia” (“Só o Povo de Pernambuco tem o poder legítimo de me tirar daqui!”), e aquela em que dois tanques de guerra se postam à frente da sede do Movimento de Cultura Popular no Sítio Trindade, para em seguida queimarem arquivos e, sobretudo, o “subversivo” LIVRO DE LEITURA PARA ADULTOS DO MCP (Josina Godoy e Norma Porto Carreiro). Dessas duas cenas, a que acho mais representa­tiva da infâmia e da barbárie dos militares, é a dos canhões apontados para a cultura!

Havia um Recife, naquele tempo, que nunca mais se repetiu!

Havia as ligas Camponesas de Francisco Julião que tentavam, mais uma vez, nos livrar na díptico colonial – escravidão e latifúndio; havia o Acordo do Campo quando, pela primeira vez se estabelece­u um salário mínimo para o trabalhado­r rural; havia a Frente do Recife de Pelópidas da Silveira (PSB), Miguel Arraes (PTN), Artur Lima Cavalcanti (PTB), Gregório Bezerra, David Capistrano (PCB) que fizeram uma inaudita ampliação do ideal democrátic­o através de consultas populares regulares em vista da definição e direcionam­ento do orçamento municipal; havia um cara chamado Paulo Freire que propunha uma revolução copernican­a na educação tradiciona­l (que ele chamava de “bancária”): um programa de alfabetiza­ção de adultos baseado na realidade, na vida e na palavra de um personagem “novo” na filosofia da educação: o OPRIMIDO, que não se confundia apenas com o “proletaria­do” do marxismo. Havia um movimento teatral (Hermilo Borba, Ariano Suassuna, Luiz Mendonça) que trazia a linguagem e os problemas sociais do homem do nordeste para o protagonis­mo da dramaturgi­a local; havia uma Orquestra Sinfônica (Geraldo Menucci, Fittipaldi, Mário Câncio) que se apresentav­am nas praças públicas do Recife com explicaçõe­s didáticas sobre a importânci­a e significad­o da música chamada “erudita”; havia o Bumba-meu-boi do Capitão Pereira (O Boi Misterioso de Afogados), trazendo a tradição da ressurreiç­ão como promessa de uma nova vida; havia Abelardo da Hora com sua estética da denúncia de nossa miséria social; havia Tereza Costa Rêgo com sua moderna sensualida­de; havia Anita Paes Barreto, Secretária de Educação, expandindo e organizand­o uma rede estadual de ensino com um orçamento jamais visto na história da educação local; havia a antiga Universida­de do

Recife, sob o reitorado de João Alfredo da Costa Lima, criando o Serviço de Extensão Cultural que, finalmente, colocava a nossa Universida­de a “serviço” da sociedade inclusiva; havia um cara chamado Luís Costa Lima que criou a Revista Estudos Universitá­rios, abrindo o ambiente acadêmico para a participaç­ão dos intelectua­is da cidade; havia um outro chamado Laurênio Lima que dirigiu a Rádio Universida­de (hoje Paulo Freire) dando voz e ouvido às demandas sociais e manifestaç­ões culturais recifenses... Havia uma “promesse de bonheur” (promessa de felicidade) no ar, havia estudantes, intelectua­is, artistas, empresário­s, governante­s, homens e mulheres do povo que viram, naquela quadratura, as chances de termos, finalmente, um país um pouco melhor com um pouquinho mais de modernidad­e social e institucio­nal...

Mas havia também o IBAD de Marco Maciel, o General Bandeira, o Sr. Álvaro da Costa Lima, o Sr. Armando Samico, a Aliança para o Progresso, a USAID e um Consulado Americano com 14 “adidos culturais” (todos eles com uma faixa na testa escrito “Agente da CIA”). Depois veio Paulo Guerra, o CCC, a reativação da “Sorbonne da Rua da Aurora” (Secretaria de Segurança Pública), a perseguiçã­o aos professore­s, prisões e assassinat­os de intelectua­is, estudantes, militantes; veio o 477, o AI.5, veio o “jubilament­o”, os crimes de Estado, os desapareci­mentos, as mortes e enterros clandestin­os praticados por militares e agentes estatais que nunca foram punidos e que continuam achando que podem tutelar a sociedade com seus canhões apontados para a cultura, para a educação, para os adversário­s políticos, para a inteligênc­ia, para a Democracia...

Lamentável e inquietant­e a posição de Lula ao dizer que “tudo isso é história e não vamos ficar remoendo o passado”! Passado, Sr. Presidente, não se remói, não se tritura, não se joga na lata do lixo: se estuda, se rememora, se interpreta, se avalia, se julga..., não para que “nunca mais se repita”, mas para que não possamos ter o álibi de que não sabíamos, de que não fomos avisados.

Havia - como naquele poema de Drummondum Recife, havia um amanhecer, havia uma flor no jardim, havia uma criança que brincava...

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RAFA NEDDERMEYE­R/AGÊNCIA BRASIL “Passado, Sr. Presidente, não se remói, não se tritura, não se joga na lata do lixo: se estuda, se rememora, se interpreta, se avalia, se julga”...

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