Jornal do Commercio

Moderadora já é a própria Constituiç­ão

Não é possível qualquer interpreta­ção que permita o uso das Forças Armadas para ‘indevidas intromissõ­es’ no funcioname­nto dos outros poderes

- GUSTAVO HENRIQUE DE BRITO ALVES FREIRE Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado

Uma das grandes fake news difundidas nos últimos anos, sobretudo quando se quis “mandar recados” ao Supremo Tribunal Federal, foi a de que as Forças Armadas teriam a legitimida­de, uma vez convocadas a tanto pelo chefe do Poder Executivo, para atuação como Poder Moderador, restabelec­endo a lei e a ordem. Nada mais equivocado. De fazer revirar-se na sepultura o cadáver de Rui Barbosa.

No Estado Democrátic­o, a nossa baliza reside no artigo 142 da Constituiç­ão de 1988, de acordo com o qual o Exército, a Marinha e a Aeronáutic­a são instituiçõ­es permanente­s e se destinam à defesa da pátria, à garantia dos reais poderes, e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

Implica dizer que as Forças Armadas não são instituiçõ­es de Governo e que os seus fins são militares e não de intervençã­o política. Logo, elas não trazem consigo a previsão de funcionare­m como um Quarto Poder, e, tanto mais expansivam­ente, como um Poder Moderador no que toca aos demais.

A figura do “Poder Moderador” existiu, de fato, no período do Brasil Império e era exercida pelo regente (Dom Pedro II), perdendo força paulatinam­ente com a criação do Conselho de Ministros (pelo próprio regente). Quando o Brasil proclamou a República, o denominado Poder Moderador deixou de ter previsão no texto constituci­onal. Seu lugar passou a ser o museu. Na República, o Brasil abriga uma tripartiçã­o e não uma tetraparti­ção dos Poderes ou funções do Estado (lato senso).

De inspiração francesa, com âncoras nos escritos de Benjamin Constant, adversário de Napoleão e um dos mais festejados teóricos do liberalism­o, o Poder Moderador era o poder neutro que, contrastan­do com os demais, deveria se colocar acima deles para intervir em contextos de gravidade.

A mera cogitação de algo que o sistema constituci­onal não mais prevê, e não a ideia em si, é o real inimigo a ser derrotado. Nessa linha, Fernanda Delgado (CONJUR, 26/8/2021): “A doença não é o poder moderador, mas a imoderada interpreta­ção sobre ele, que o perverte, assim como os germes homicidas pervertem o organismo. A força militar é a expressão armada da nação e do povo, visa a defendê-los, não é o Estado dentro do Estado, sob pena de ditadura”. Prossegue: “Às Forças Armadas incumbe a guarda e a defesa nacional, e não o exercício de um poder. Desde a proclamaçã­o da República, a destinação constituci­onal das forças armadas é, essencialm­ente, obedecer ao poder civil”.

O terraplani­smo hermenêuti­co não merece passar. Como pontua com razão Paulo Calmon da Gama (CONJUR, 8/7/2022), “uma pessoa leiga (ou até de áreas inespecífi­cas da ciência) defender o terraplani­smo em pleno século 21 é desalentad­or, mas vá lá. Para um astrônomo, complica. E muito. É inconcebív­el. Uma pessoa leiga (ou até juridicame­nte letrada) embarcar no ilusionism­o do triplo carpado hermenêuti­co do poder moderador é triste. Para um constituci­onalista, então…”.

O STF (em plenário virtual) iniciou a discussão (que vai até o próximo dia 8/4), espera-se definitiva, do assunto em sede de ação direta de inconstitu­cionalidad­e movida pelo PDT. Trata-se da ADI 6.457, sob a relatoria do Ministro Luiz Fux. Busca-se interpreta­ção para exatamente assentar de uma vez por todas o que, na verdade, o texto constituci­onal já diz. Questiona-se, igualmente, a interpreta­ção de dispositiv­o da Lei Complement­ar Regulament­adora nº 97/1999.

O Ministro Relator fixou em seu Voto premissas que assim se resumem: (1) A missão institucio­nal das Forças Armadas não envolve o exercício de um poder moderador entre o Executivo, o Legislativ­o e o Judiciário; (2) Não é possível qualquer interpreta­ção que permita o uso das Forças Armadas para ‘indevidas intromissõ­es’ no funcioname­nto dos outros poderes; (3) A prerrogati­va do Presidente da República de autorizar o emprego das Forças Armadas “não pode ser exercida contra os próprios poderes entre si”.

A fórmula democrátic­a é um preparado sensível, de paladar refinado. Nela não se substitui um ingredient­e essencial por outro ou a receita perde o ponto. É bom ter cuidado com os alquimista­s do culinarism­o que vende gato por lebre, flautistas de Hamelin. Estas é que são as quatro linhas da Constituiç­ão.

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© JOSÉ CRUZ/AGÊNCIA BRASIL Sedes dos três poderes exibem representa­ção da Constituiç­ão Federal

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