O que a democracia pediria antes de apagar as velas de aniversário em um mundo polarizado
Nesta edição de 105 anos do JC, uma reflexão sobre democracia e o futuro da política
Omaior inimigo da direita não é a esquerda. O maior inimigo da esquerda não é a direita. Ambos têm o mesmo rival e lutam juntos contra ele: o moderado.
A polarização política que existe no mundo hoje, dentro das principais e maiores democracias do planeta tem a ver com uma crise no entendimento da realidade, muito mais do que com uma falência do sistema democrático.
Há um véu ideológico sobre os verdadeiros problemas do mundo, sobre o que realmente importa, e interessados de ocasião na esquerda mais radical e na extrema-direita aproveitam isso para atacar aquilo que os afasta do poder ilimitado, que é o equilíbrio democrático.
FALÊNCIA DESEJADA
Essa ideia de falência da democracia, aliás, é o objeto de maior interesse dos autocratas espalhados pelo mundo. E não somente deles. Os populistas, que são autocratas com verniz democrático, ansiando por uma oportunidade de romper com os freios e contrapesos que os limitam, também carregam o maior interesse na ilusão de uma guerra entre esquerda e direita que anime ações populares de uns contra os outros.
MOTOR DE PAIXÃO
Guerras, principalmente as ideológicas, cultivam a paixão política, afastam o cidadão comum do entendimento de sua própria condição precária e premiam governantes com adoração e fanatismo. O moderado, seja de direita ou de esquerda, atrapalha esses movimentos. Porque esse moderado questiona e dialoga.
NAS MELHORES “FAMÍLIAS”
Basta parar um pouco para perceber que, respeitadas as diferenças culturais, jurídicas e político administrativas de cada país, estamos vendo esses acontecimentos se desenrolarem no Brasil como nos EUA, em Portugal, na França, na Itália, na Argentina, entre tantos outras nações antes firmes em suas convicções democráticas.
O processo é sempre o mesmo: crises econômicas (reais ou reforçadas por fake news), cultivadas nas redes sociais em tom de revolta extrema, que acabam com questionamentos sobre a efetividade da democracia.
POR QUE AGORA?
Usando o Brasil recente como exemplo, por estarmos mais próximos, qual crise econômica e política brasileira foi mais grave do que o período entre os anos 1980 (pós-ditadura) e início dos anos 1990? Houve um presidente com rejeição estratosférica, outro presidente cassado, um vice-presidente assumindo sem ter a menor noção do que fazer com o cargo que ocupava, e nunca se discutiu crise na democracia ou se questionou a necessidade do sistema democrático.
E POR QUE AGORA?
O que mudou?
Os EUA tiveram períodos de crise muito mais intensos do que os atuais. A França foi destruída no pós guerra, Portugal enfrentou crises infindáveis, a Argentina arrasta sua crise há décadas.
E por que somente agora surgem tantos questionamentos com a democracia como alvo? Porque a democracia é uma ferramenta dos moderados, sejam eles de esquerda ou de direita. Os moderados dominaram a cena nesses países por muito tempo e a ascensão das redes sociais os prejudicou.
DIFICULDADE
Moderados precisam dialogar, precisam de tempo e espaço para convencer e incentivar reflexões. É preciso se adaptar ao mundo do Whatsapp, Twitter (ou X), Tik Tok e Instagram, com seus espaços curtos e a velocidade dos feeds acelerados operados por mentes cada vez mais ansiosas e com pouco espaço para pensar.
O moderado não se adaptou bem ao mundo moderno e abriu espaço para os cretinos fundamentais, extremistas de esquerda ou direita.
Extremistas não conversam, gritam. E o grito, a exasperação, o corte seco do insulto é muito melhor adaptável às redes sociais do que o diálogo e a ponderação.
As redes eram as ferramentas que faltavam aos extremistas de esquerda e de direita, porque a batalha deles contra os moderados, e não entre si, é antiga.
BOBBIO 1
Em seu livro “Esquerda e Direita”, o escritor Norberto Bobbio faz uma análise sobre isso e conclui que os dois lados extremos dessa polarização são mais dependentes do que rivais.
“Ludovico Geymonat, que sempre se proclamou um extremista (de esquerda), inclusive quando da assim chamada refundação do Partido Comunista Italiano, reuniu certa vez alguns de seus artigos políticos e os intitulou de Contra o Moderantismo”, relata Bobbio. E diz mais: Geymonat reclama nos textos e trata como absurdo que “os moderados renunciaram às transformações sociais da sociedade herdada do fascismo e se satisfizeram com a democracia”.