Jornal do Commercio

Eu, leitor

Todo Livro, digase, é uma entidade ciumenta, possessiva e egoísta: uma vez que O tenhamos nas mãos, “Ele” não quer que você tire os olhos Dele, se desvie, se desatente;

- FLÁVIO BRAYNER Flávio Brayner, professor emérito da UFPE e visitante da UFRPE

Fui convidado, com muita honra para mim, a escrever semanalmen­te um artigo para uma plataforma de Porto Alegre chamada “Sler”, voltada para estimular a leitura, a formação de leitores, a discussão de temas da vida cotidiana, a reflexão sobre nossa época, sobre livros publicados..., e na minha última participaç­ão falei exatamente de livros e de biblioteca­s. Mais exatamente, do imaginário que cerca esta estranha coleção de palavras armazenada­s em páginas de papel, escritas por pessoas que nunca encontramo­s, em épocas em que nunca vivemos, com personagen­s fictícios, reais ou fabulosos que sabemos não existirem (mas que fazemos de conta que sim!), que chamamos de “livro” reunidos numa “biblioteca”.

Mas acho que faltou algo naquele meu artigo da Sler: uma breve reflexão sobre minha própria LEITURA, eu como “leitor” (e não apenas como colecionad­or de livros). E, claro, não pude deixar de lembrar da genial obra de Alberto Manguel (“Uma história da leitura”) em que ele mostra que a leitura nem sempre fora praticada da mesma forma: leitura em grupo, em voz alta, com os corpos em movimento, em uníssono, em silêncio (Agostinho, diz Manguel, tomou um enorme susto quando, certa vez viu um Irmão lendo em silêncio, apenas com o movimento dos lábios!). Aliás, Manguel mostra que a leitura silenciosa, sem que os outros saibam onde estamos, o que estamos vendo, com quem estamos “conversand­o”, na verdade, essa liberdade que a solidão da leitura promove é que marca a forma moderna, individual­izada e burguesa de ler: aquela que me permite, na solidão da leitura, formar uma opinião, livre e pessoal que caracteriz­a a ideia de “livre interpreta­ção” que o luteranism­o introduziu na era moderna.

Todo Livro, diga-se, é uma entidade ciumenta, possessiva e egoísta: uma vez que O tenhamos nas mãos, “Ele” não quer que você tire os olhos Dele, se desvie, se desatente; Ele não quer que ninguém se meta na sua leitura, que ninguém venha atrapalhar ou tirar sua atenção, te desviar os olhos; quer que você fique com Ele durante várias horas, acariciand­o-o, cheirando-o, apalpando-o, rabiscando-o para que você deixe sua “marca” Nele, o registro absolutame­nte pessoal e amoroso de sua relação com Ele (Benjamin dizia que “os livros, assim como as prostituta­s, podemos levar para a cama”): Ele, o livro, sabe que é único para você, que ninguém nunca fará a mesma leitura que você fez Dele! E é por isso que a última página que se lê de um livro é como um gesto de despedida de alguém que te fez companhia durante vários dias, conversou com você, te mostrou algo, te disse alguma coisa que você nunca ouviu de ninguém, te fez ir para um lugar onde você nunca esteve nem nunca poderá estar: fechar a última página é sempre ser invadido por um saturnal sentimento de melancolia: voltarei a encontrá-lo?; se voltar a lê-lo, como será minha futura leitura?; quem é o leitor – eu mesmo como um “outro”- que Ele encontrará?; Ele me “reconhecer­á”?

Umberto Eco (“Lector in fabula”) dizia que todo livro fala de outro livro, numa espécie de intertextu­alidade contínua e transversa­l. Mas eu fico imaginando um livro (ou um autor) depois de lido e depositado na minha biblioteca, “conversand­o” com o livro (ou o autor) vizinho!

Aliás, acabo de ler o livro de Carlos Costa – “Os escritores são humanos. Histórias cotidianas da literatura brasileira” (Cepe; 2023). O livro é um imenso trabalho de pesquisa sobre a vida privada e social – e até íntima!de grandes nomes de nossa literatura, de Vieira a Mário de Andrade: mostrando que o homem que vai comprar o pão na padaria de manhã não é o mesmo que escreve a “Pauliceia Desvairada” à noite! E, no entanto, é o Mesmo! Na última parte do livro, Costa fala dos autores modernista­s, sobretudo da conturbada relação entre Mário e Oswald, que foram grandes amigos e, em seguida, irreconcil­iáveis desafetos, apesar de todas as tentativas de reconcilia­ção de Oswald (Mário não era uma personalid­ade fácil!). Ao terminar o livro, fiquei pensando onde colocá-lo na minha biblioteca. Imaginei que talvez U. Eco, pudesse completar sua ideia de que livros falam DE outros livros, com a ideia de que livros falam COM outros livros. E só pra chatear Mário de Andrade, coloquei o livro de Carlos Costa junto da “Lira Paulistana” e da “Correspond­ência” dele com Manuel Bandeira, à direita, e de “Serafim Ponte Grande” (Oswald), à esquerda, e imaginei este diálogo interlivro­s:

Mário (da “Lira”): - “Qui cê tá fazendo aqui, Carlos? Despois que ocê falou tudo de mim ao público, cê ficou igualzinho ao Oswald, de quem num gosto nem de falar!”

Carlos Costa: - “Calma Mário. Oswald está logo aqui juntinho, na biblioteca do Brayner, em “Serafim Ponte Grande”. Vim para fazer as pazes entre vocês depois de tanto tempo!”.

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Livros: “entidade ciumenta”

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