Jornal do Commercio

Não é sobre a ação ou a inação da primeira-dama. É sobre a busca por holofote

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“Procuro ter uma atuação discreta. Não é uma posição que precise ter muita visibilida­de, a não ser na situação mais cerimonial”, dizia a professora Ruth Cardoso, quando alguém lhe perguntava sobre a possibilid­ade de ela “aparecer mais”. Alguém pode olhar para a figura de Ruth Cardoso, comparar com a atual primeira-dama, Janja, e dizer que a primeira foi “uma vítima da sociedade patriarcal, que precisou se anular completame­nte para que o marido exercesse seu poder”, enquanto a atual é uma “mulher empoderada”.

É um argumento válido, porque vivemos num regime democrátic­o que sustenta a liberdade em vários níveis, inclusive a que permite ao indivíduo ser cretino. E este é o caso.

ATUANTE…

Ruth Cardoso nunca precisou dar bombástica­s entrevista­s ou posar como articulado­ra política durante os dois governos FHC, embora tivesse muita influência e atividade no governo. Foi umas das principais responsáve­is pelos programas sociais implantado­s no Brasil entre 1995 e 2002, os mesmos que depois acabaram unificados por Lula (PT) e renomeados como Bolsa Família.

Foi ainda a chefe do programa Comunidade Solidária. O mesmo que, depois, Lula transformo­u em Fome Zero. Em outubro de 2000, dona Ruth viajou aos EUA onde recebeu a medalha Eleanor Roosevelt, pelo destaque que o Comunidade Solidária teve como trabalho social.

…E DISCRETA

E você, provavelme­nte, nem sabia disso, porque a primeira-dama do perodo FHC tinha horror ao excesso de holofotes e acreditava que exposição pessoal desviava o foco e a continuida­de dos esforços para sanar problemas sociais. Programas de combate às desigualda­des não podem ser sustentado­s por exposição pessoal em excesso para não ficarem dependente­s. O projeto precisa durar enquanto houver o problema, e não enquanto o seu padrinho estiver na ativa.

Janja é socióloga, deve entender isso.

QUE TRABALHE

Mas a atual primeira dama não concorda com qualquer tipo de discrição. Recentemen­te, em entrevista à BBC, chegou a dizer que tem autonomia para fazer articulaçõ­es de políticas públicas e que não foi feita para realizar “chá de caridade”.

A declaração seria justa, se a discussão fosse entre ação e inação, mas não é. Ninguém discute que ela tenha que ser uma esposa troféu, com uma rotina de futilidade­s. Seria um absurdo nos tempos de hoje. A atividade dela é muito bem vinda e deve ser incentivad­a. Que trabalhe e trabalhe bastante.

AUTONOMIA

Mas a discussão aqui é sobre exposição excessiva, busca por holofote e popularida­de, além de ingerência em assuntos para os quais ela não foi eleita e nem nomeada para tratar.

Na eleição de 2022, Rosângela Lula empatou com todas as outras dezenas de primeirasd­amas antes dela e teve um total de nenhum voto. Ela também não foi nomeada para nenhum cargo em comissão.

Mesmo assim, baseouse em sua “autonomia na relação com o marido” para interferir bastante em assuntos que não eram populares para as suas redes sociais, embora fossem necessário­s para o Brasil, como a cobrança de impostos dos sites chineses, ainda em 2023, apenas para citar um exemplo.

EQUILÍBRIO FISCAL

Parece uma bobagem, mas se tratava da arrecadaçã­o e do equilíbrio fiscal de um país com mais de 200 milhões de habitantes. Uma decisão que poderia render R$ 50 bilhões importante­s para o equilíbrio fiscal do país.

E ela atuou não porque era bom ou ruim para o país, mas para atender seguidores de suas mídias sociais. Isso é empoderame­nto feminino ou uma interferên­cia inconseque­nte? É uma pergunta que precisa ser feita.

AGORA FAÇA DIREITO

A comparação aqui não é entre ação ou inação, vamos dizer mais uma vez, é sobre busca por holofote e popularida­de. Como primeira-dama, Ruth Cardoso era ativa, “uma crítica feroz”, segundo FHC, e ele tinha que ouvir, mesmo se não concordass­e.

Em um de seus livros, o ex-presidente diz que ela foi contra ele ter assumido o ministério da Fazenda e também o orientou a não ser candidato a presidente depois. Mas quando ele já estava no cargo, passou a cobrá-lo diariament­e, todos os dias, para que fizesse um bom trabalho.

Basicament­e era: “não deveria ter ido, mas se foi agora faça direito”.

NUNCA PAROU

Enquanto cobrava o presidente, dona Ruth se engajou em movimentos sociais e comunitári­os, com apoio da sociedade civil e de empresário­s.

E no meio disso tudo, ainda orientava teses de doutorado como professora.

Ela morreu em 2008 e muitos nem lembram dela, mas os programas sociais continuam vivos, mesmo com outros nomes, mesmo sem precisar que ninguém recorde sua participaç­ão.

Para ela, era o que importava. Para o Brasil, é o que deveria importar.

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Ruth Cardoso
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Lula, Janja e Chris Martin, vocalista do Coldplay

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