VALESKA ZANELLO ‘JOÃO DE DEUS NÃO É EXCEÇÃO’
A professora do departamento de psicologia clínica da Universidade de Brasília e coordenadora de estudos sobre saúde mental e gênero explica a enxurrada de denúncias contra o médium e alerta para as especificidades do crime de abuso
Em pouco mais de uma semana, desde que as primeiras mulheres começaram a denunciar, os ministérios públicos de São Paulo e Goiás receberam, juntos, 400 denúncias contra João de Deus. Mas o que explica o silêncio das vítimas até então? Para a professora do departamento de psicologia clínica da UnB (Universidade de Brasília) e coordenadora de estudos em saúde mental e gênero Valeska Zanello, o fenômeno não é novidade, e ela alerta: há muitos casos semelhantes por aí.
O que pode explicar o fato de as vítimas do médium terem permanecido tanto tempo em silêncio?
Algumas características relacionadas à cultura do estupro, que é uma cultura que faz com que as mulhe- res tenham desconfiança da própria violência sofrida. É uma situação na qual existem muitos afetos misturados e a mulher fica confusa, ela não sabe o que está acontecendo. Não acontece só com líderes espirituais, mas com professores, com terapeutas e médicos, de forma que ela não sabe onde termina a cura ou onde ultrapassou o limite para ser abuso. A vítima também fica em dúvida se ela não teve algum tipo de culpa ou participação no que está acontecendo. Em terceiro lugar, dá muito medo de denunciar, são figuras que têm autoridade.
Há um efeito encorajador quando uma mulher começa a denunciar?
Sim, isso é muito comum em casos de abusos e assé- dio. Quando a mulher começa a nomear o agressor, vem uma enxurrada de mulheres. Mas me interessa menos o fenômeno do contágio e muito mais o fenômeno de repetição. É muito difícil que um abusador, quando não é barrado pela denúncia, não tenha uma série de vítimas. Por isso a denúncia é tão importante. O Brasil é um dos países mais violentos do mundo, que mais mata e estupra mulheres. Mas não podemos tratar o caso do João de Deus como exceção. Ele está na base.
Que tipo de dificuldades impedem as vítimas de abuso sexual de denunciar?
Tem um receio de não ser acreditada, de ser culpabilizada e deslegitimada na sua fala. Além dis- so, é uma situação muito constrangedora falar sobre abuso sexual. Imagine ter que falar isso em uma delegacia, dar detalhes. Por isso, quando alguém passa por isso e fala sobre, as outras se encorajam.
Nesse caso em particular, como a senhora vê a relação do religioso com as mulheres afetadas? Muitas chegaram a voltar a frequentar a Casa Dom Inácio, mesmo após os abusos...
Em geral, as pessoas que buscam esse tipo de líder espiritual estão fragilizadas, estão em uma situação de crise. Essas pessoas passam por qualquer coisa para manter viva a esperança.