O Dia

As anotações de Amâncio

- Gabriel Chalita Professor e escritor

Amâncio mora em um bairro tranquilo de uma grande cidade. Trabalhou a vida toda como sapateiro. Aprendeu esse ofício ainda criança e dele sempre se orgulhou. Conheceu muitas pessoas. Algumas já partiram.

Ouviu muitas histórias. Sempre com atenção. Aproveitou elogios e críticas. Aos poucos, foi entendendo do pisar de cada um. E dos temperamen­tos que moram acima do pisar. Certo dia, uma mulher o encarou e agradeceu pelos saltos consertado­s de um tamanco de família. Trocou as chinelas e, ansiosa, saiu da sapataria com os tamancos renovados. Recebeu gente irritada também. Presenciou discussões. Aprendeu em casa que alterar a voz é pouco educado, inclusive para revidar arroubos de outros.

Estudou pouco, o Amâncio. No seu tempo, era difícil conciliar as coisas. Seu pai morreu quando ele era muito pequeno. Coube à mãe cuidar dele e das três irmãs menores. Do tempo que estudou, guarda a lembrança de Dona Arlete, que, um dia, ensinou que todos os dias deveríamos aprender alguma coisa nova: “Nem que fosse uma palavra”, dizia ela. Amâncio gosta de anotar em um caderninho as palavras que não conhece. Depois pesquisa. E pensa sobre elas.

A sapataria de Amâncio, hoje, é tocada pelos sobrinhos. Ele não se casou nem teve filhos. Vez em quando, ele aparece por lá. Observa as histórias que descansam nas prateleira­s ao lado de tantos sapatos que servem para o caminhar de tanta gente. Gosta de sentar no banco da praça e conversar com aposentado­s que moram naquele bairro. Falam de tudo. Lembranças e esperança. Quando está sozinho, Amâncio folheia o tal caderninho e viaja com as palavras aprendidas em tantos anos de vida.

Dia desses, ele parou em uma e riu sozinho. “Ataraxia”. Quando ouviu essa palavra, achou que fosse algum remédio. Era o Antonino, professor de línguas difíceis, que havia dito a palavra em tom elogioso a Amâncio. Na época, ele agradeceu sem entender. Mas pesquisou. A tal palavra nasceu faz muito tempo, na Grécia, e significa tranquilid­ade, diminuição da intensidad­e dos desejos, paz interior.

Amâncio se lembrou de que ele tentava lembrar de cor a tal palavra bonita e não conseguia, tinha que abrir o caderninho. Um dia, em uma conversa no entregar de uns sapatos arrumados, disse isso ao professor Antonino. E ele, sem tempo para rodeios, declarou que Amâncio não precisava decorar o que já vivia. Disse o professor que ele era um consertado­r de vidas pela tranquilid­ade com que ouvia e falava. “Precisamos de paz, de gente que inspira paz”, concluiu o professor.

Antonino já morreu, mas aquilo ficou com Amâncio. É bom aprender, mas o melhor é viver o que se aprende. A palavra “paciência”, um dia, já foi desconheci­da. A palavra “cabotina” é importante de ser conhecida para ser evitada. A palavra “compaixão” é a que Amâncio acha a mais bonita de todas. Sofrer o sofrimento do outro, ajudar no seu caminhar, arrumando o que se consegue, mas estando ali no caso de alguma queda. Os nossos pés precisam ficar mais protegidos com sapatos arrumados. Mas e o que mora acima? O que protege nossa alma? Nossas intenções? Há tantas palavras naquele caderninho, há tanto significad­o para ser aprendido. Há tantas pessoas que já se foram, mas que disseram alguma coisa que mereceu ser anotada.

Ah, o tempo. O tempo apressado. Ainda ontem, Amâncio era um menino. Passaram-se, então, 90 anos. E ele prossegue. Nos seus passos lentos. Na sua humildade cativante de saber que, todo dia, pode aprender alguma coisa. Ontem, uma sobrinha sua disse que aprendeu na aula de Filosofia uma palavra que queria passar para ele. Amâncio abriu logo o caderninho para anotar. “Eudaimonia”, disse ela. Ele olhou para o alto, achou bonito e escreveu.

“Tio, a palavra significa felicidade. É um dom e é um hábito. Todo mundo tem, mas nem todo mundo vive. Lembrei do senhor, porque o senhor, para mim, é o retrato de um homem feliz”. Ele anotou, palavra e significad­o, deu um beijo bom na sobrinha e saiu caminhando vagarosame­nte até a praça. Ali olharia para as pessoas e para o tempo. “Eudaimonia”, repetia ele. “Essa vai ser difícil de decorar”. Lá do Céu, o professor Antonino talvez esteja dizendo, “Não precisa, Amâncio”.

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LUIZA ERTHAL
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