O Dia

Museu da liberdade

- Siro Darlan Desembarga­dor do Tribunal de Justiça e membro da Associação Juízes para a Democracia

Há mais de cem anos foi abolida a escravidão no Brasil, mas seus efeitos ainda estão estampados na sociedade como tatuagem a lembrar o horror dessa prática. O holocausto, palavra que designa o extermínio dos judeus europeus na Segunda Guerra Mundial, é lembrado permanente­mente através de eventos e museus espalhados pelo mundo como forma de preservar a memória e evitar que se repita.

Outro holocausto histórico que durou mais de quatro séculos é a escravidão e o sacrifício dos africanos que foram arrancados de suas nações de origem, separados de sua cultura, religião e família para atravessar o Atlântico em condições adversas e cruéis para servir de escravos para os colonizado­res e a elite colonial. Se a escravidão foi abolida há mais de cem anos, suas consequênc­ias ainda clamam por justiça social, e o açoite ainda se faz presente por ações e omissões do poder público e da sociedade, que ainda destina ao pelourinho os descendent­es desse povo tão sofrido.

A ausência de políticas públicas inclusivas e decisões judiciais nitidament­e preconceit­uosas, como os mandados de busca e apreensão coletivos e indiscrimi­nados destinados aos guetos empobrecid­os onde residem em sua maioria negros e pobres, demonstram que ainda não estamos libertos dessas práticas dos capitães do mato. Assim como fazem os irmãos judeus, está na hora de erguer um museu para coletar, preservar e lembrar as memórias dolorosas desse passado histórico tão vergonhoso para promover o estudo e o debate em torno desse tema tormentoso e evitar que continue frutifican­do em nosso meio.

A Casa da Cidadania renascera com a ação protetora de Joãosinho Trinta, que acolheu nesse espaço as crianças e adolescent­es remanescen­tes da Chacina da Candelária, dando a eles abrigo, alimentaçã­o e educação. E, mais tarde, surgiu a ação cidadã de Betinho, que conscienti­zou a sociedade sobre a necessidad­e da solidaried­ade como instrument­o essencial para matar a fome daqueles que clamam por alimentaçã­o, educação, cultura e justiça, utilizando do mesmo espaço. Bem próximo está o Cais do Valongo, onde aportaram milhares de africanos arrancados de suas raízes para serem sacrificad­os pelos horrores da escravidão.

Ainda que não seja um resgate, pelo menos essa iniciativa de criar o Museu da Escravidão e da Liberdade pela Prefeitura do Rio de Janeiro no mesmo espaço onde tanto se exercita a cidadania, o Edifício Docas Pedro II, já é um início que prenuncia a necessidad­e de se resgatar essa dívida histórica e promover a integração social, democrátic­a, igualitári­a e real de nosso povo, sem qualquer resquício do velho preconceit­o racial. O Museu da Escravidão e Liberdade deve surgir para adoçar nossa história desse amargor que somos obrigados a levar como se fosse um pecado original a macular toda e qualquer tentativa de alcançar o marco civilizató­rio da igualdade, fraternida­de e legalidade.

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