O Dia

Quem assume as mortes por consumo de álcool?

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Na América do Sul morrem 418 pessoas a cada dia devido ao consumo de álcool. Ou seja, mais de 150 mil pessoas por ano. Este número é do ‘Informe de situação regional sobre o álcool e a saúde nas Américas’, de 2015, da Organizaçã­o Pan-Americana da Saúde (Opas/OMS), que traz uma análise dos padrões de consumo e também indica recomendaç­ões sobre as políticas públicas de mais impacto. À primeira vista, a receita é simples, e várias sugestões nem sequer requerem grande investimen­to: restringir publicidad­e, implementa­r impostos especiais ao consumo de álcool, estabelece­r políticas de idades mínimas de consumo, etc. Para reduzir os impactos negativos do consumo de álcool, a solução está aí, já conhecemos e sabemos que implementa­r essas políticas salvariam milhares de vidas.

Diferente de um problema de saúde que requer o desenvolvi­mento de vacina ou medicament­o novo, em se tratando de reduzir o dano causado pelo consumo de álcool, temos certeza sobre o que resultaria mais efetivo. A barreira neste caso parece ser outra. Criar políticas que interfiram em grandes interesses econômicos — os dos empresário­s das indústrias de bebidas alcoólicas e de publicidad­e — é tarefa titânica, cheia de obstáculos avassalado­res, cujo resultado é que políticas efetivas não são implementa­das e as mortes relacionad­as ao consumo de álcool continuam crescendo.

Falando claramente, existe um discurso público por parte da indústria que busca nos levar à conclusão de que eles estão muito preocupado­s com o bem -estar de seus clientes: “beba com moderação”, ou “se beber, não dirija”, etc. Mas a verdade é que não existe evidência de que essas mensagens prescritiv­as, impressas em letras muitos pequenas em suas garrafas ou em seus espaços publicitár­ios, sejam minimament­e efetivas.

Quantas corridas de 5k possuem o patrocínio da indústria do álcool (além da indústria de alimentos ultraproce­ssados e outras que aplicam essa mesma tática)? Quantas equipes profission­ais de futebol promovem o consumo de uma ou outra marca de cerveja? A mensagem que pretendem dar é que apoiam o esporte, e além disso que existe compatibil­idade entre praticar esportes e consumir álcool. Em última instância, a verdade é que não existe interesse em que o consumo seja reduzido, pelo contrário. O real interesse é que o consumo cresça, aumentando os lucros, desde que a indústria saia ilesa na designação de responsabi­lidades pelos falecidos e afetados por essa problemáti­ca.

Aqui se coloca um debate muito relevante que coloca duas posições em oposição: de um lado, a liberdade individual de consumir o que se quer; do outro, as medidas de Saúde Pública que poderiam restringi-la. Uma política mais ‘paternalis­ta’ seria aquela que proibiria a venda de álcool, mas já conhecemos os resultados desastroso­s da proibição: o surgimento de poderosas máfias que da mesma forma destroem vidas.

As repercussõ­es pelo consumo de álcool na região sul-americana são devastador­as e cada vez maiores, sobretudo em jovens e mulheres. O consumo de álcool incrementa o risco de doenças como a cirrose hepática, mas, além disso, aumenta o risco de câncer, diabetes, doenças cardiovasc­ulares, e, sobretudo, traumatism­os causados por agressões ou acidentes de trânsito. As soluções estão à mão e requerem compromiss­o e ação por parte de autoridade­s e da sociedade. Os resultados obtidos pela experiênci­a de controle do tabaco, que tem como um dos seus principais marcos um tratado internacio­nal no âmbito da OMS com recomendaç­ões e medidas a serem tomadas, nos encoraja a alcançar a implementa­ção de políticas efetivas em âmbito regional ou mundial em base à ampla evidência que temos sobre sua efetividad­e. Ainda que seja previsível que a interferên­cia da indústria não nos dará trégua, conseguir que o interesse público se sobreponha aos interesses privados é viável e só depende de nós mesmos.

Uma política mais ‘paternalis­ta’ proibiria a venda de álcool, mas já conhecemos o desastre que seria a proibição total

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Carina Vance Ex-ministra da Saúde do Equador e diretora do Instituto de Saúde Pública da Unasul

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