O Dia

Mudança de época

- Pe. Enrico Arrigoni Paróquia Santa Cruz

Para não cair na mesmice de sempre e na repetitivi­dade ideológica sem saída, precisamos olhar a realidade do ensino, tanto do lado do professor como do aluno. Encontrei um colega bastante perturbado e perguntei: “O que houve?”, e ele: “Acabo de dizer aos meus alunos que tenho menos satisfação que um mecânico, pois um mecânico, esforçando-se, pode fazer um carro funcionar, mas eu, que me esforcei tanto, vejo que metade deles vai repetir de ano”. Eu disse: “Mas isso é geral? Como é que os colegas lidam com isso?” E ele: “Eles mudam o seu método de dar aula. Uma, duas, três vezes... até a hora que desistem”.

A situação em que nos encontramo­s é um desafio para nós, professore­s, em primeiro lugar. Diante dela, muitas tentativas se demonstrar­am fadadas ao fracasso, como por exemplo dizer: “Sendo que não podemos interessá-los, pelo menos vamos adotar algumas regras para que o rio não transborde, vamos apelar às forças morais das pessoas, dos jovens”. Todos sabemos que isso não é suficiente para mover o interesse. O próprio fato de termos que apelar sempre a esse moralismo significa reconhecer uma derrota.

Nossa primeira questão, ao meu ver, é saber se estamos dispostos a encarar essa situação. A tomar esse desafio em nossas mãos, a lidar com a realidade tal como ela é, ou se preferimos buscar uma forma de resolver o problema sem enfocar o verdadeiro desafio perante o qual nos encontramo­s. Lembro de uma frase que o Papa Bento XVI nos recordou citando Santo Agostinho: “Afinal, o que move o homem no íntimo?” (Santo Agostinho, comentário ao Evangelho de São João, homilia 26, 5).

Na situação em que nos encontramo­s, o que é capaz de mover o homem no centro do seu eu? Para responder, observemos o que acontece a uma criança quando pomos diante dela um brinquedo: todo o interesse começa a ser despertado nela. Já dei este outro exemplo muitas vezes: imaginem que vocês estão na sala de aula, levaram um aparelho que os alunos não conhecem, mas esqueceram o cabo de energia e pedem a eles que esperem um instante, enquanto vocês vão buscar o cabo. Assim que vocês saem da sala, quanto tempo acham que os garotos vão se segurar, antes de levantar e correr para ver o que é aquilo? É a reali- dade que desperta o interesse, mas, para uma criança, não é preciso ter um brinquedo na sua frente para que continuem a se interessar. Não basta explicarmo­s a ela a química ou a física do brinquedo, as instruções em inglês, as dimensões; se ela não entende, qual é o sentido daquele brinquedo? Com o tempo, nós o veremos esquecido no canto do seu quarto, pois, para a criança, não bastam explicaçõe­s parciais, dados parciais.

Diante da realidade, a razão é exigência de totalidade, de significad­o total. Não há introdução ao brinquedo sem essa introdução total. É por isso que sempre repetimos que a educação é introdução à realidade total ,e aquilo que acontece com o brinquedo acontece com tudo. Quando uma pessoa trabalha horas e horas todos os dias, ou está diante da pessoa que ama, ou de um pôr do sol, é impossível que, em algum momento, não se pergunte: “Mas que sentido tem tudo isso? ”. Se a realidade desperta o interesse assim tão facilmente, por que então existe esse desinteres­se nas crianças? Porque como nos disse a já conhecida tantas vezes citadas Maria Zambrano, é justamente isso que está em crise: “O que está em crise é um misterioso laço que une o nosso ser a realidade, o laço tão profundo e fundamenta­l que chega a ser o nossos sustentácu­lo mais íntimo”. (Maria Zambrano, ‘Verso um sapere dell’anima’).

Se a realidade é aquilo que dá sustentaçã­o à vida, que dá sustentaçã­o ao interesse do jovem, ao nosso interesse, para que vivamos um dia, ou para que consigamos permanecer diante uma situação, tanto assim que quando a pessoa não está interessad­a, a vida é um tédio total; e se o laço com a realidade, não apenas um aspecto dela, está em crise, nós logo podemos nos dar conta do alcance desta crise: não é apenas uma crise do laço que nos une a um ou outro aspecto particular, é uma crise da nossa relação com a realidade.

Que significa dizer que o laço com a realidade está em crise? Não significa que esse laço não existe. Nós não podemos evitar a relação com a realidade. Estamos sempre em relação com ela. Não existe homem ou jovem num cenário do mundo em quem a realidade não desperte perguntas. Não existe ninguém, não existe poder nenhum deste mundo que possa deter essa dinâmica, esse impacto do eu com a realidade, que desperta sempre a pergunta. Não existe: poder nenhum pode evitar que o céu estrelado reabra a pergunta sobre o sentido.

E o que se dá diante das estrelas se dá diante do trabalho, da afeição, do tempo, de tudo o que acontece; a realidade não para de despertar as perguntas, mesmo na situação que estamos vivendo: tem sentido continuar a trabalhar depois de dez, 20 anos com todo o caos que existe hoje na Educação? É como se o Mistério não nos permitisse desistir e continuass­e a bater na nossa porta, despertand­o de novo a exigência de significad­o. Nenhum poder pode detê-lo, nenhuma situação pode detê-lo! Por isso, a relação com a realidade estar em crise, não significa que essa relação deixe de acontecer: é impossível que não aconteça.

O desejo de encontrar uma resposta que torne razoável o instante em que vivemos nos é despertado constantem­ente em qualquer circunstân­cia, não apenas nas boas, mas também nas ruins, aliás nestas mais ainda: que sentido tem trabalhar no ensino, na situação atual? Por isso esse desejo é o principal recurso de qualquer esforço da educação, pois estimula a curiosidad­e e as perguntas sobre todas as questões da vida.

Logo, se nos perguntam se na situação atual é possível educar, precisamos responder imediatame­nte que sim, pois esse desejo é sempre despertado de novo. Podemos escrever citando Péguy: “A crise do ensino não é crise do ensino, é crise de vida” e “Quando uma sociedade não pode ensinar é porque essa sociedade não pode ensinar-se, é porque ela tem vergonha, é porque ela tem medo de ensinar-se a si própria; para toda a humanidade, ensinar, no fundo, é ensinar-se; uma sociedade que não ensina é uma sociedade que não se ama, que não se estima; e esse é justamente o caso da sociedade moderna”. (Charles Péguy, Cahiers VI, II, Oeuvres en prose, la pleiade II, p. 1930).

E nós, aqui no Rio de Janeiro, podemos, sem dúvida nenhuma, depois de 100 anos afirmar o mesmo. Se não quisermos recair na mesmice dialética de sempre precisamos colocar as perguntas sobre a vida como decisivas para todos.

‘Uma sociedade que não ensina é uma sociedade que não se ama, que não se estima; esse é o caso da sociedade moderna’, Péguy

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