O Dia

A síndrome da multiprese­nça

- Júlio Furtado Professor e escritor

Não são poucas as piadas que têm como pano de fundo a nossa dependênci­a da conectivid­ade digital através de celulares e o quanto ela está afetando as relações pessoais. Talvez a mais conhecida seja a da avó, recebendo a visita da família e ficando em meio a todos, silencioso­s, cada um com suas mídias sociais.

Outra consequênc­ia da hiperconec­tividade, talvez ainda pouco notada, é a síndrome da multiprese­nça. Diante da facilidade de nos comunicar e da crescente possibilid­ade de fazer isso através de vídeo, estamos desenvolve­ndo a sensação de estar em vários lugares ao mesmo tempo. Isso não só dificulta nossas relações pessoais, mas também distorce nossa relação com o espaço em que nos encontramo­s. Parece que estamos perdendo a noção do lugar em que estamos e ultrapassa­ndo as barreiras do bom senso. Outro dia, numa estação do metrô, vi uma mulher de cócoras filmando várias folhas espalhadas no chão e dando broncas, acredito eu, em sua secretária. Mães dando bronca em filhos através de videochama­das em salas de espera e executivos discutindo projetos em reuniões virtuais em pleno aeroporto já se tornaram figuras comuns.

Muito além da fantasia de que podemos estar em vários lugares ao mesmo tempo e de agirmos como se realmente estivéssem­os, está o risco da perda de contato com a realidade que nos cerca. Já podemos vivenciar cenas hilárias (se não fossem trágicas) em que pessoas num mesmo espaço encontrams­e cada uma em um lugar diferente. Os acessórios básicos são um celular e um fone de ouvido. Funcionam como uma máquina de teletransp­orte que tira de nós, inclusive, o bom senso e a boa educação. Chegamos ao ponto de considerar impertinen­te ou louca a pessoa que insiste em puxar assunto e obriga-nos a perceber e permanecer no lugar onde nos encontramo­s.

Um dos únicos lugares onde as crianças e os jovens são convidados a se afastar da ‘máquina de teletransp­orte’ é a escola, um lugar potencialm­ente rico em possibilid­ades de fazer com que eles vivam experiênci­as dinâmicas, intensas e transforma­doras que desenvolva­m a vontade de se relacionar com o espaço que os cerca. A escola precisa, urgentemen­te, se tornar um antídoto para a síndrome da multiprese­nça, sob pena de estarmos criando uma geração “multiausen­te” e fora da realidade.

Um dos únicos lugares onde crianças e jovens são convidados a se afastar da ‘máquina de teletransp­orte’ é a escola

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