O Dia

As cinzas e os dias que virão

- Gabriel Chalita Professor e escritor

Havia uma penteadeir­a com algumas gavetas que guardavam algumas fotografia­s. Havia também alguns livros antigos e algumas agendas de papel. No chão, ao lado da penteadeir­a, algumas listas de telefone. Ana não sabia por que ainda não havia jogado fora. Eram acúmulos e acúmulos em uma casa pequena. “Pequena era a vida”, pensava ela. Tudo havia passado tão depressa. Olha alguns álbuns e se recorda de algumas datas. O pai era muito religioso. Livros de oração e de novenas também foram se acumulando. Joaquim já morrera há 20 anos. “Nossa!”, assusta-se ela. Ah, o tempo!

Vê livros antigos de antigas campanhas da fraternida­de. Olha para o relógio e decide que vai à missa. O pai gostava de explicar o sentido da Quarta-Feira de Cinzas. Iam todos. O pai, a mãe, os dois irmãos e Ana. E voltavam com o sinal na testa.

Era ainda pequena quando o pai dizia que as cinzas significam a nossa fragilidad­e. “Um tombo, apenas, e nossa vida, aqui na Terra, termina”, era o exemplo que dava o pai. “Somos frágeis”, insistia ele.

Recorda-se Ana de que a expressão que se usa nesses dias é algo como isso: “Lembra que és pó e ao pó retornarás”. Ela não entendia direito a relação do pó com a fragilidad­e humana. Nem com a história do tombo. Quando criança, achava lindo tudo o que o pai dizia e sorria para ele. Na Quaresma, tempo que se inicia na Quarta-Feira de Cinzas e que prepara a Páscoa, acostumava­m-se a fazer algum tipo de sacrifício. Não comiam carne, não bebiam. E cada um escolhia algo de que gostava muito para deixar de comer por 40 dias. Ana escolhia o chocolate, depois se arrependia, mas seguia fazendo o tal do sacrifício. O pai explicava que era para sentir a falta que sentiam aqueles que não tinham alimentos. É disso que ela se lembra. Além de outros ensinament­os bonitos do pai.

Falar mal de alguém era errado. Fa- zer mal para alguém, também. Se as cinzas representa­vam a nossa fragilidad­e e a necessidad­e de sermos humildes, os dias que seguiam tinham de ser a vivência desse ensinament­o.

Foi nessa família que Ana cresceu e envelheceu. A mãe morreu quando ela ainda era menina. Os irmãos tomaram o seu caminho. Encontram-se com alguma frequência, mas cada um tem a sua família. Ana não se casou. Gosta da vida que leva. Aposentou-se como secretária em uma grande empresa. Tem algumas economias, não muitas, mas o suficiente para viver com dignidade. Gosta do bairro em que vive. Gosta de andar a pé. De ir à padaria, ao mercado, à farmácia, à igreja. Hoje, tem medo da violência que vem crescendo e levando embora vidas e esperança. “Os tempos andam sombrios”, pensa ela. Falta Deus no coração das pessoas.

Ela olha para a foto do pai, novamente, e viaja para os dias passados. Rezavam antes das refeições. Rezavam antes de dormir e quando acordavam. O pai preferia ser enganado a enganar, injustiçad­o a praticar injustiça. Era um homem bom. Decididame­nte, era um homem bom. Ela se lembra disso. Coisas do passado. Coisas que não passam.

“Todos nós morreremos”, prossegue ela nos seus pensamento­s. Por que, então, a arrogância, por que o desprezo ao outro, por que nos acharmos melhores?

Decide ligar para os irmãos para combinarem alguma coisa. As fotos aumentaram a saudade. Os que se foram podem ser revisitado­s no baú das lembranças, mas os que estão aguardam algum aceno.

Na missa, rezaria pela alma dos pais. “A fé melhora as pessoas”, balbuciava ela.

Lembrou-se da tia doente. A única irmã do pai ainda viva. Amanhã mesmo faria um bolo de coco com abacaxi para adoçar o seu entardecer.

As cinzas. “Sim, as cinzas e os dias que virão”, pensa ela. “Serão melhores. Serei melhor”, decide. Sempre há tempo para melhorar.

Ana fecha a gaveta e abre um sorriso lindo, lembrança de alguma história que a visitou.

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