Ela agora mora nos braços da paz
Autora de músicas como ‘Acreditar’, Dona Ivone Lara morreu aos 96 anos em CTI, após três dias de internação
Protagonista feminina do samba — foi a primeira mulher a se destacar na ala de compositores de uma escola —, Dona Ivone Lara morreu vítima de insuficiência cardiorrespiratória na noite de segunda-feira, aos 96 anos. E foi velada num lugar que ajudou a consolidar: a quadra da escola de samba Império Serrano, em Madureira. Amigos, fãs e familiares foram prestar homenagens à artista.
A Dama do Samba estava internada, em estado grave, desde a última sexta-feira — por acaso, a data de seu aniversário — no CTI da Coordenação de Emergência Regional (CER), no Leblon, na Zona Sul da cidade. Ela deu entrada na unidade para tratar uma anemia, cujas complicações foram causadas pela idade, e precisou receber transfusões de sangue. O enterro da sambista aconteceu no Cemitério de Inhaúma na tarde de ontem, às 16h30.
“Nossos últimos dias foram bastante corridos por causa de sua internação. Agora, é hora de seguir a natureza. Ela descansou e teve uma morte tranquila. Vamos continuar o legado dela. Os ensinamentos dela foram todos ligados ao samba e a ajudar as pessoas. Dona Ivone foi uma revolucionária, só que ela não usava armas. Usava o samba”, conta o neto André Lara.
O prefeito Marcelo Crivella decretou luto oficial de três dias e divulgou nota em que afirma, entre outros temas, que “Dona Ivone Lara cantou e tornou possíveis sonhos, engrandeceu lutas, transpôs preconceitos”. “Em seus versos cresceu o samba, fortaleceram-se as mulheres, ape- quenou-se o racismo. Eu, que morei na África durante anos, convivi com um povo que cresce nas adversidades, repleto de esperança e força de imaginação, assim como nossa dama do samba que hoje se foi”, escreveu o prefeito.
O presidente Michel Temer também divulgou nota via redes sociais. “Ela rompeu barreiras fortes até hoje, tanto na sua Império Serrano quanto na humanização do tratamento psiquiátrico, com Dra. Nise da Silveira. Me conforta tê-la homenageado ainda em vida”.
Quem pôde assistir a um show de Dona Ivone Lara tem a consciência de ter presenciado a história diante de seus olhos. E não apenas a história da música brasileira. A própria trajetória de Yvonne Lara da Costa era formidável, incluindo lances como seu pioneirismo na entrada das mulheres no samba. Ou sua convivência profissional com a psiquiatra Nise da Silveira, no período em que foi assistente social e enfermeira, até 1977. O apoio às outras pessoas caminhava lado a lado com o trabalho como compositora, como frisava. “O samba é o sinal de que Deus me deu a oportunidade de ser útil para alguém”, afirmou.
DOZE ANOS
Ivone ganhou o “Dona” em 1970 por influência do apresentador Osvaldo Sargentelli, quando contribuiu com duas músicas para o LP ‘Sargentelli e o Sambão’. O primeiro samba, no entanto, ela já tinha composto quatro décadas antes. Aos 12, fez ‘Tiê’, que chegaria ao disco apenas em 1974, na coletânea ‘Quem Samba, Fica? Fica!’, da Odeon (hoje Universal).
Filha de musicistas amadores, Ivone perdeu o pai aos 3 e a mãe aos 12. Passou a morar com os tios, com quem teve lições de música, e aprendeu canto com Lucília Guimarães. Seus dotes vocais foram elogiados pelo marido dela, ninguém menos que Heitor Villa-Lobos.
Ivone envolveu-se aos 25 anos com a escola Prazer da Serrinha, após o casamento com Oscar Costa, filho de Alfredo Costa, presidente da agremiação. Mas foi no Império Serrano, a partir de 1947, que sua relação com o samba virou caso sério. Passou a dançar na ala das baianas e, em
Uma mulher, negra, que venceu todas as batalhas que lutou. E só perdeu uma, que ela não poderia ganhar mesmo. Na verdade nenhum de nós vencerá. Que a senhora continue sendo luz, e olhe por nós aí de cima” ARLINDO NETO, Cantor
“Acho que o artista não morre, ele muda de lugar. A música continua aí viva na nossa memória. Um beijo, Dona Ivone! Deus lhe receba de braços abertos” ZECA PAGODINHO, cantor
1965, assinou ao lado de Bacalhau e Silas de Oliveira o samba-enredo ‘Os Cinco Bailes da História do Rio’. Tornou-se a primeira mulher a destacarse na ala de compositores de uma escola. Antes dela, Carmelita Brasil, presidente da Unidos da Ponte, escreveu todos os sambas do grêmio entre 1959 e 1964.
“Dona Ivone é a mais importante representante feminina do samba depois de Tia Ciata”, conta Filó Filho, vice-presidente social do Renascença Clube, que a homenageou ano passado na FliSamba — Festa Literária do Samba, ao lado de Nelson Sargento.
CARREIRA
Ivone gravou 19 álbuns e também foi cantada por Maria Bethânia e Gal Costa (‘Sonho Meu’), Roberto Ribeiro (‘Acreditar’) e Clara Nunes (‘Alvorecer’), entre outros. Boa parte das músicas foi feita com Délcio Carvalho, morto em 2013, seu principal parceiro. Em 2015, a Musickeria lançou um pacote da série ‘Sambabook’, com livro e DVD/CD com convidados, em sua homenagem. Cinco anos antes, ela foi a homenageada do Prêmio de Música Brasileira, liderado por José Mauricio Machline. Em 2009, lançou CD e DVD gravados no fechado Canecão, com participações de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Beth Carvalho, Zeca Pagodinho, Délcio Carvalho, Arlindo Cruz, Jorge Aragão, Bruno Castro e Velha Guarda do Império Serrano. E em 14 de setembro, ela ganha um musical com sua história, ‘Dona Ivone Lara - Um sorriso negro’, que estreia no Teatro Carlos Gomes, com texto de Elísio Lopes.
O neto André Lara, também compositor, conta que Ivone deixou muito material. “Há muita coisa já finalizada. Estamos esperando a maré baixar para ver se vamos mesmo abrir o baú”, conta.
A Rainha do Samba se foi e vai deixar muita saudade. Mas o seu exemplo e seus sambas extraordinários continuarão a fortalecer as mulheres, os negros, o Brasil e o povo brasileiro”
Obrigado por tudo, Dona Ivone Lara. As bênçãos, os ensinamentos, as conversas, os sambas, a poesia” DUDU NOBRE, Cantor e compositor
“Meu carinho eterno pra esta que deixou um legado musical pra sempre na nossa memória afetiva. Tive a honra de poder ter feito um prêmio em sua homenagem” JOSÉ MAURÍCIO MACHLINE, Criador do Prêmio da Música Brasileira
“Dona Ivone eternamente no meu coração, e o samba agradece tudo que você fez em vida e deixou de herança pra gente. Descansa em paz e daqui vamos seguindo”
Joia rara, a grande dama do samba, um ícone. Obrigado pelo legado deixado para mim, para os nossos filhos, netos e muitas outras gerações” MUMUZINHO, Cantor e ator