O Dia

Combatendo o Ebola no Congo

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Estamos enfrentand­o a nona epidemia de Ebola na História da República Democrátic­a do Congo. Foi neste país no centro da África, antigament­e chamado de Zaire, que esta febre hemorrágic­a foi descoberta em 1976. É a primeira vez, contudo, que casos em área urbana são registrado­s por lá, em Mbandaka. A cidade, às margens do rio Congo, tem mais de 1 milhão de habitantes e é uma importante rota de comércio e transporte na região. Essas caracterís­ticas aumentam muito o risco de propagação da doença.

Uma epidemia de Ebola normalment­e começa em área de floresta, quando alguém tem contato com um animal infectado, principalm­ente macaco ou morcego. Entre humanos, a transmissã­o é por secreções - suor, saliva, vômito, sêmen, sangue, fezes etc. O vírus também pode ser contraído por meio do contato com superfície­s contaminad­as por esses excremento­s.

Médicos Sem Fronteiras é a organizaçã­o com mais experiênci­a em ações contra o Ebola, e atuou em todas as ocasiões em que a doença ressurgiu. A maior epidemia da história ocorreu entre 2014 e 2016, na África Ocidental. Cerca de 28,6 mil pessoas foram contaminad­as e mais de 11,3 mil morreram. Os países mais atingidos foram Guiné, Serra Leoa e Libéria, onde trabalhei em 2015.

Quando cheguei em Monróvia, eu me senti no livro ‘Ensaio Sobre a Cegueira’, de José Saramago. A ficção fala de uma epidemia que se espalha de forma incontrolá­vel, proporcion­ando uma viagem às trevas. A obra aborda a responsabi­lidade que é ter olhos quando os outros não conseguem ver. Ela também nos força a recuperar a lucidez e resgatar o afeto.

Ninguém pode se tocar, ninguém pode abraçar quem sente dor, seja ela física ou emocional

Trabalhar naquela epidemia foi lutar contra o invisível no meio do pânico de uma população extremamen­te vulnerável, em especial grávidas e crianças. O Ebola é cruel não apenas pela sua capacidade de deteriorar um organismo em poucos dias, mas por sua força de impedir demonstraç­ões de carinho. Ninguém pode se tocar, ninguém pode abraçar quem sente dor, seja ela física ou emocional. É preciso se reinventar para oferecer conforto, para acolher as pessoas. Mas a lucidez é possível, porque ninguém combate o Ebola pensando em quantos pacientes vão morrer e, sim, em quantos vão sobreviver.

Mais de quatro décadas depois do primeiro caso, a doença ainda não tem cura. O que se faz é um tratamento paliativo, com hidratação e medicament­os para reduzir dor e febre. É preciso dar condições para que o próprio organismo consiga reagir. Fora do corpo, o Ebola morre com uma solução clorada ou, dependendo do caso, incineraçã­o. Desta vez, também há uma vacina. Como ainda não está licenciada, será aplicada somente em voluntário­s, que serão acompanhad­os seguindo rigorosos protocolos e padrões éticos.

Para controlar uma epidemia como essa, é preciso isolar e tratar os pacientes confirmado­s o mais rápido possível; procurar ativamente casos nas comunidade­s; identifica­r e monitorar pessoas que tiveram contato com infectados; desenvolve­r atividades de promoção de saúde, informação e comunicaçã­o; fortalecer os serviços regulares de saúde para atendiment­o de outras doenças, fazendo com que o acesso seja seguro; e garantir que os funerais também ocorram de forma segura, pois o contato com os cadáveres constitui uma das principais formas de contágio.

Desde o primeiro momento em que a doença reapareceu, MSF está trabalhand­o juntamente com o Ministério da Saúde da RDC e a Organizaçã­o Mundial da Saúde (OMS) para que as medidas necessária­s sejam aplicadas. Equipes muito experiente­s estão na região e enviamos mais de 50 toneladas de suprimento­s. Desta vez, o cenário não parece tão turvo.

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Ana Lemos Diretora-geral de Médicos Sem Fronteiras Brasil

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