O Dia

Moacyr Luz e o Rio na veia

- Luís Pimentel Jornalista e escritor

Opé-sujo (que já deve ter virado buteco de grife) ficava na esquina de Salvador de Sá com Correa Vasquez, no Estácio. No quadrado entre a escola de samba, o hospital da PM, a igreja Batista e o Presídio Frei Caneca (a descrição da vizinhança pretende apenas reafirmar essa capacidade carioca de convivênci­a). Sujeito se deliciava com a leitura d´O DIA, jornal dobrado na página 2. De repente abriu um sorrisão, deu um gole na gelada, bateu a mão espalmada na mesa e sentenciou: “Esse cara é foda!”

O cara era o cantor e compositor Moacyr Luz, já conhecidís­simo por suas canções - ‘Saudades da Guanabara’, ‘O anjo da Velha Guarda’, ‘Cachaça, árvore e bandeira’, ‘Medalha de São Jorge’, ‘Flauta de prata’ e tantas outras -, parceiro de bambas como Aldir Blanc, Paulo César Pinheiro, Martinho da Vila... Enfim, diz-me com quem andas.

O leitor do Estácio talvez não conhecesse ainda a veia literária de Moacyr Luz (conhecido de Irajá ao Pirajá como Moa), já exposta em livros como ‘Manual de sobrevivên­cia nos botequins mais vagabundos’ (organizado por Marcelo Moutinho) ou ‘Botequim de bêbado não tem dono’.

Eu também era leitor-frequentad­or de carteirinh­a da barraca de cronista do Moa e posso confirmar: seus textos arrebentav­am mesmo. A cada sexta-feira um prato feito, sempre com tempero especial, no cardápio variado de exposição da verve, da ginga, da malandrage­m, do charme, da prosopopei­a, da alegria, da simpatia e também das angústias de explorador­es das ruas, dos becos, das feiras livres, dos mercados, das dos estádios, das rodas de samba e, especialme­nte, dos botequins dessa cidade.

Quem perdeu no jornal não precisa chorar sobre o leite (“Amigo eu nunca fiz bebendo leite”, diz um verso seu) derramado. Boa parte dessa produção foi selecionad­a e agrupada no volume ‘O Rio de Moa’ (Mórula Editorial), organizado por André Diniz e Diogo Cunha. Como é gostoso ler (ou reler) as crônicas do Moacyr. Como ele entende do chamado “espírito carioca”, dos personagen­s que rondam o imaginário ou que trafegam nas ruas do Rio, como o taxista apaixonado e abandonado que ele conheceu um dia:

“O homem soluçava de engasgar. Comovido, pergunto o xis da separação. ´Ela descobriu que eu sou casado. E isso é motivo para me abandonar?´ Um carioca nato.” Também carioca nato, Moa conhece esses tipos como ninguém, sabe o que eles pensam, o que comem e bebem e, especialme­nte, ao que aspiram: “O fulano encosta no balcão e, com meia hora de cerveja, se transforma no teu amigo íntimo, dormindo padrinho na família”.

Nesse Rio de Janeiro de tantos cronistas geniais, com tradição imbatível no gênero (seu parceiro Aldir Blanc é mestre maior!), Moacyr Luz entra com destaque, violão no ombro e caneta em punho, nessa galeria. “O Rio de Moa” é coisa muito fina, sinhá, que felizmente ainda se acha por aí. Que nem o sofrido, porém bravo e charmoso espírito carioca.

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