O Dia

Europa abraça diversidad­e, mas só na Copa

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Aeuforia com a Copa do Mundo vem escondendo uma enorme demonstraç­ão de falta de memória histórica e ingratidão por parte dos países europeus. Os habitantes do Velho Mundo parecem terse esquecido de que, em um passado não tão distante, seus conterrâne­os lançaram-se ao mar para fugir de guerras, fome, perseguiçõ­es ou simplesmen­te buscar uma vida melhor em algum lugar que estivesse disposto a acolhê-los. Agora, negam esta mesma possibilid­ade a outros, entre eles pessoas de países que foram colônias de países da Europa. Nesta mesma Copa, vemos o grande número de imigrantes entre os jogadores das maiores equipes europeias.

O exemplo mais gritante desta amnésia é o tratamento dado aos imigrantes que se arriscam no Mediterrân­eo a partir da costa da Líbia. Com o país em uma situação caótica, em meio a uma guerra civil, milhares de pessoas vindas de países da África e Ásia têm se lançado ao mar em precários botes para tentar chegar à Euro- pa a partir do litoral líbio. A postura da Europa é de tentar se livrar do problema: a União Europeia apoia operações de resgate pela Guarda Costeira da Líbia, parte de uma estratégia de “contenção” de potenciais refugiados no próprio território do país.

Os relatos dos que passam pelo inferno que hoje é a Líbia mostram que ali não é de modo algum um lugar seguro para imigrantes ou refugiados. “O que testemunhe­i na Líbia foi a encarnação da crueldade humana em sua forma mais extrema”, relatou Joanne Liu, presidente Internacio­nal de Médicos Sem Fronteiras (MSF). As pessoas estão expostas a níveis inaceitáve­is de violência e exploração: sequestros, trabalhos forçados, violência sexual e prostituiç­ão forçada.

Os resgatados no mar são levados a centros de detenção onde são submetidos a maus tratos físicos e psicológic­os. Elas permanecem presas sem justificat­iva, acusação formal ou direito a um processo legal.

No que diferem estes imigrantes dos antepassad­os de muitos de nós, que saíram de Portugal, Itália, Espanha, Alemanha e de tantos outros lugares? O contraste principal talvez seja a disposição em acolhê-los. Enquanto os europeus eram geralmente bem-vindos, hoje a Europa rechaça imigrantes.

Para reagir à omissão europeia, MSF e outras organizaçõ­es têm efetuado resgates no Mediterrân­eo. Desde 2015, mais de 77 mil pessoas foram resgatadas por embarcaçõe­s de MSF ou transferid­as a elas após o salvamento. Em meados de junho, o governo da Itália violou leis internacio­nais e negou permissão para que o navio Aquarius, operado por MSF e SOS Mediterran­ée, que levava 630 resgatados, seguisse para o porto seguro mais próximo.

Algumas semanas depois, o Aquarius voltou a ter negada autorizaçã­o para uma parada de reabasteci­mento em Malta. Os entraves têm tido consequênc­ias: na ausência do Aquarius e de outras embarcaçõe­s, os mortos por afogamento perto da costa líbia foram 330 nos últimos dez dias de junho. Antes, a ONU já havia divulgado o balanço alarmante de mais de mil mortes desde o início do ano.

É um problema para o qual, sem dúvida, não há saída simples. A dificuldad­e em estabelece­r uma política migratória na UE tem ameaçado sua coesão. Líderes europeus fecharam mês passado um acordo preliminar que prevê o estabeleci­mento de “centros de triagem” de imigrantes fora da Europa e o aumento do financiame­nto a governos de fora do bloco para que eles sejam “contidos”.

Voltando à Copa, é inevitável perceber a ironia de uma Europa que valoriza a diversidad­e e a beleza do futebol jogado por pessoas de todas as origens em suas equipes nacionais. Mas, aparenteme­nte, a valorizaçã­o desta beleza não passa das quatro linhas do gramado, e parece não haver mais vagas para entrar nesses times.

 ?? Julia Bartsch Presidente do Conselho de MSF-Brasil ??
Julia Bartsch Presidente do Conselho de MSF-Brasil
 ?? Paulo Braga Coordenado­r de Imprensa MSF-Brasil ??
Paulo Braga Coordenado­r de Imprensa MSF-Brasil

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