O Dia

O não-dito

- Gabriel Chalita Professor e escritor

Era o velório do pai. Foi de repente. Cassiano estava viajando e, quando voltou, o pai já agonizava em um hospital. Uma infecção qualquer que não sabiam explicar. Um sangrament­o no estômago. Um coração que resolveu parar de dizer.

E o pai se foi. E, com ele, as possibilid­ades de alguns ditos. O pai sempre foi um homem correto, cioso de suas responsabi­lidades. Na simplicida­de da roça, aprendeu com o pai o que pôde. E cuidou do pai até o último instante. Amou-o. Respeitou-o. Não sabia muitos ditos elogiosos, mas sabia estar perto. E sabia respeitar. Dizia para si mesmo, com orgulho humilde, que nunca levantara a voz para o pai.

De seu jeito, tentou passar para os filhos os mesmos valores.

Não estudou, mas deu estudo aos dois. Chorou nas duas formaturas. Emocionou-se abraçando a mulher. Economizou nas próprias roupas para vestir melhor os filhos. Para ele, uma bicicleta velha; para os dois, o que podia comprar de melhor.

Cassiano era o filho que mais discordava do pai. E debochava do irmão que trabalhava com o pai em uma barraca de coco e, à noite, cursava faculdade de direito. Cassiano gostava da vida boa. Gostava de viajar. Bebia mais do que o necessário, na opinião do pai. As horas de ausência de sono desperdiça­das, sabe-se lá onde eram outros pontos de divergênci­a. O pai queria que Cassiano fizesse uma faculdade, que trabalhass­e, que respeitass­e as mulheres. E o filho ria arrogante da inferiorid­ade do pai. Aliás, ele que era filho de pai vendedor de coco. Quando perguntava­m, desde muito tempo, respondia que era filho de empresário. A mãe tentava corrigir o filho. Mas não conseguia.

A última briga, antes da viagem de Cassiano, antes da súbita doença do pai, foi muito dura para toda a família. Era um jantar simples, e o pai falou de um conhecido que fora à barraca falar de um dinheiro que havia emprestado ao Cassiano. “Um dinheiro para você comprar uma cadeira de rodas para sua avó? Que vó é essa?” - o pai dizia indignado - “Eu não ensinei filho meu a mentir”.

Cassiano levantou-se da mesa e gritou que não tinha culpa de ter nascido pobre. Que não gostava da vida que levava. Que estava com uma namorada nova e que precisava de dinheiro para impression­ar a moça. Que iria viajar com ela. E foi dizendo tudo aos gritos. O irmão estava na faculdade. Pai e mãe olharam-se tristement­e. E foi assim a despedida.

No velório do pai, Cassiano lembrava do não-dito, das ausências de gratidão, das poucas demonstraç­ões de amor ao homem que tanto fez a ele. A mãe não cobrou nada do filho. Era dia de dor e não de remexidas em feridas tão abertas. O irmão consolava a mãe.

A sala do velório foi se enchendo. Amigos, o pai tinha aos montes. O filho olhava de um lado, olhava de outro. E chorava.

O irmão o abraçou forte. Cassiano desabou: “Na última vez que estivemos juntos, eu gritei tanto com ele, e agora não dá mais para fazer as pazes”.

Depois de uma pausa, ele disse: “Dá sim, beija a testa dele, se despede e diga tudo o que ficou faltando dizer, ele está te ouvindo, eu tenho certeza disso”.

Do lado de fora do velório, no cemitério movimentad­o, a chuva começava a acalmar o dia. Perto do túmulo onde o pai de Cassiano seria enterrado, já havia dois ou três homens mexendo na terra.

Todos os dias há alguém fazendo isso.

Todos os dias há alguém pensando no que poderia ter feito no último momento em que viveram juntos. No não-dito.

 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil