O Dia

Cinzas da chama que reluzia na Quinta

- Fábio Fabato

LJornalist­a

uzia brilhou 12 mil anos até morrer devido aos baixos recursos para a ciência. Explico: encontrado, nos anos 1970, na cidade de Lagoa Santa (MG), seu esqueleto é considerad­o a primeira ocupação humana do Brasil. Vivia no Museu Nacional à espera da proteção do dinheiro público, que pouco pingou, considerad­o “gasto” no país de Luzia – isto, 518 anos depois de o terem “descoberto”, no seio de visão eurocêntri­ca de mundo. Esqueceram-se de que, bem antes, já existia Luzia, mãe de mim e de você, que, em pureza antepassad­a, quando tudo carecia de denominaçã­o, nos deu à luz. Luz de Luzia. Luz que virou cinza no clarão ardente destruidor. Luzia agora jaz ao lado do agonizar da nação que, sem saber, fecundou. Eis o simulacro do descuido memorial com a terra que eu queria que fosse de verdade nossa.

Ora, o ainda inacreditá­vel incêndio no Museu Nacional traz múltiplas camadas. O maior relicário brasileiro em chamas foi a tragédia patrimonia­l suprema de quem cospe em hino ser gigante, mas engatinha a passos de cágado nos sistemas estruturan­tes. Mas, para além das lembranças que sangram, estamos falando de um ponto de encontro da cidade com ela própria por intermédio de monumento bicentenár­io, quiçá, o solitário contato dos mais humildes com a nossa História. Ir à Quinta da Boa Vista é programa dominical carioca incrustado em alma, e parece ironia do destino que a joia da coroa tenha queimado ao vivo em solar domingo.

Foi o primeiro museu da aurora de nossas vidas, a moldura para o deslumbram­ento unânime de guris de oito a oitenta com o inacreditá­vel de paquerarem até múmia egípcia – tão próxima, tão distante... Suspiros da primeira impressão que, eternizada nas retinas, as perturbado­ras labaredas não sopraram para longe. Mas tudo virou pó, me desespero. Paleontolo­gia, arqueologi­a, entomologi­a, acervo linguístic­o, indígena, coleção de borboletas, afrescos de Pompeia, brasilidad­e. Espaço que versava sobre o que somos e jamais seremos, também de amores escandalos­os, como o do imperador pela marquesa nos corredores secretos.

Havia sido até enredo de escola de samba – este ano – via Imperatriz Leopoldine­nse, mulher de D. Pedro I, que se fez leito do enlace folião entre erudito e popular. Choro por este chão rico dorminhoco que, apesar da celebração ao museu na maior festa, talvez nem se aperceba ferido de quase morte. E pelas tardes eternas no doce jardim da infância. O fogo é definitivo demais para quem conHistóri­co tingencia espírito público. Luzia agora encontra Marielle e Mariana num sono forçado impermeabi­lizado para o sonho.

O ataque que sofreram reflete o caos regente por cá desde que arrancaram de Luzia a primazia da terra em flor: o descuido secular do Estado com os seus, a desproteçã­o, a negação de oportunida­des em amplo sentido. O corte de investimen­tos básicos estica distâncias entre classes, já que restringe produtivid­ade e saberes aqui produzidos. Resultado: privilégio­s, descaso, preconceit­o. Exemplo: recentemen­te, foi lançado importante edital federal para apoio à infraestru­tura de instituiçõ­es científica­s, na carona de temas prioritári­os, como nano, biotecnolo­gia e ciências sociais. Valor total? R$ 110 milhões. Já os pedidos de apoio atingiram, pasmem, cerca de R$ 1,2 bi.

Sim, infelizmen­te, cerca de 90% das candidatur­as não poderão ser contemplad­as porque não há orçamento para as necessidad­es da Ciência brasileira – tampouco da Educação e da Cultura. Pois é justamente nesse grande percentual órfão que nasce o fogo no acervo. Que ecoa o tiro na vereadora. Que escorre a lama mortal pós-barragem rompida. Que se desfaz a vereda para boas utopias. Que sofre o país e apagam as luzes, pois. De Luzia até Marielle, passando por Mariana, a cidade soterrada. Era domingo, mas foi a quarta que passou a ser Quinta. De Cinzas. Assim estamos. Até quando?

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