O Dia

Para seguir firme e forte na luta

David Junior, o ex-escravo Menelau de ‘O Tempo Não Para’, diz que sente “amor e ódio” fazendo a novela

- BRUNNA CONDINI brunna.condini@odia.com.br

“Meu pai dizia: ‘Com os estudos que eu te dei, você tem que ser melhor ou igual a mim, menos do que isso eu não admito’. Estou realizando um sonho meu e de minha família”, conta o ator David Junior, que faz o ex-escravo Menelau em ‘O Tempo Não Para’. O personagem teve um choque de realidade ao despertar 132 anos após ser congelado durante um acidente náutico — de homem escravizad­o, viu-se transforma­do numa pessoa livre.

O sonho de trabalhar como ator virou realidade. Mas David ainda espera que a situação da pessoa negra mude no Brasil. Ele se espelha bastante na situação de seu personagem, inclusive, e diz se inspirar em vivências suas para compor Menelau.

“Ainda carregamos resquícios dos negros escravizad­os que nos antecedera­m. Por isso, temos dificuldad­e de nos permitir viver em liberdade, para decidirmos que caminho na vida seguir. É a síndrome do ex-escravo. Ele acha que depende do senhor de engenho para viver e essa é a fragilidad­e de Menelau”, relata o ator.

IMPACTO

David, recentemen­te, viveu emoções fortes durante uma gravação da novela no Cais do Valongo, lugar na região central do Rio que é considerad­o o único vestígio material da chegada dos africanos escravizad­os nas Américas.

“Foi impactante. Aquele lugar tem uma energia incrível, sua história carrega muita dor, 4 milhões de vidas passaram naquele lugar e é possível sentir isso latente. Já conhecia o cais, assim como o cemitério dos escravos e a Pedra do Sal, pontos históricos dos negros escravizad­os no Rio de Janeiro e que recomendo a visitação”, conta ele, que dividiu a emoção com seus colegas de cena, Maria Eduarda de Carvalho (a atriz fez um post emocionado no Instagram relatando como foi o impacto de gravar lá), Juliana Paiva e Olívia Araújo.

AMOR E ÓDIO

Nas horas vagas, David gosta de andar de bicicleta, ler e estar com a família. Já o trabalho na novela é uma montanha-russa que o leva do amor ao ódio. “Vivo essa dicotomia. Tem amor porque é delicioso poder contar essa história, e reviver a força e garra do meu povo. Mas tem ódio, né? Não consigo acreditar que a humanidade tenha sido capaz de viver tamanha atrocidade com seus semelhante­s e achar isso normal”, explica.

“O melhor disso é mostrar como esse conceito histórico ficou entranhado na sociedade, já que trouxemos para os dias de hoje esses preconceit­os”, continua.

David dá a receita para que o futuro não repita o passado e não fique como em tempos mais perigosos. “O principal é a empatia. Temos visto o quanto pensamos somente no próprio umbigo, sem se importar com o sofrimento alheio”, afirma o ator.

“Vivemos tempos difíceis, que se não olharmos para o lado, para a dor do próximo, quando precisarmo­s não teremos ninguém por nós. Ver como a humanidade chegou a esse ponto, em pleno século 21, é triste”, completa.

SERENDIPID­ADE

David tem 11 anos de carreira e diz ter se encontrado na arte. Nunca foi exatamente um sonho ser ator. “Foi uma serendipid­ade (expressão que diz respeito a coisas descoberta­s por acaso)”, conta ele, que já fez cinema, teatro e quatro novelas. “Todos os personagen­s são especiais, são partos que concebemos, eu me predisponh­o a criá-los sempre de maneira diferente”.

Para 2019, ele espera dos políticos que “mantenham a democracia e façam políticas que reduzam a desigualda­de social”, diz. “A ciência eugênica alegava que em 100 anos não teríamos mais negros no Brasil, isso foi em 1918. Completamo­s 100 anos de luta contra a ciência eugênica e estamos aqui, firmes e crescendo, mas ela ainda existe e nos mata até hoje. Precisamos lutar contra isso”.

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BRUNNO RANGEL David Junior: “Ainda temos resquícios de negros escravizad­os”
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GLOBO/JOAO MIGUEL JUNIOR Olívia Araújo, Maria Eduarda de Carvalho, Juliana Paiva e David Junior

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