‘Deputados presos trabalhavam 100% em prol dos seus interesses’
Em entrevista a O DIA, o procurador regional da República Carlos Aguiar, coordenador do Núcleo Criminal de Combate à Corrupção, fala da Operação Furna da Onça, que levou dez deputados da Alerj para a cadeia. Ao ver que trabalhavam na Casa unicamente em favor de si mesmos, Aguiar criou o termo que marcou a ação:
OS DEPUTADOS presos na Operação Furna da Onça, do Ministério Público Federal, trabalhavam na Assembleia Legislativa 100% em prol dos seus interesses políticos e financeiros. Assim surgiu o termo ‘propinolândia’, cunhado pelo procurador regional da República Carlos Aguiar, coordenador do Núcleo Criminal de Combate a Corrupção, da Procuradoria Regional da República da 2ª Região. Foram presos dez parlamentares — dois já estavam na cadeia e um em prisão domiciliar. O poderio dos alvos ficou demonstrado pelo fato de terem recebido informações sobre a ação sigilosa. Além dos deputados, o então secretário de Governo Affonso Monnerat estava pronto para receber os agentes da Polícia Federal.
N ODIA: A Lava Jato mudou o desenho do Legislativo e Executivo. Há nove deputados e secretário exonerado do Governo presos. Qual a avaliação dos rumos da operação no Rio?
L CARLOS AGUIAR: A Lava Jato, a cada dia, se mostra um ponto fora da curva. Você acaba experimentando novas realidades e isso dificulta qualquer projeção em termos de futuro, do que ela é capaz de alcançar. O fato é que, desde o início em Curitiba, ninguém imaginava que chegaríamos a esse nível, muito embora fosse possível prever o alto grau de corrupção existente no estado. São nove presos, mas tem a cúpula do Detran investigada, é sintomático.
N O Rio já teve, ao mesmo tempo, três ex-governadores presos. Qual a expectativa de mudanças no Executivo e Legislativo?
L A gente tem que trabalhar com os fatos. Há muito trabalho a ser realizado. A Furna da Onça (operação) mostrou, a despeito de várias etapas da Lava Jato, que deputados agiam com desenvoltura, praticando série de atos de corrupção, desviando a finalidade de atuar em prol do bem comum, menosprezando a relevância do cargo. Enfim, traíram o povo. O que eles mais faziam era atuar em prol de um projeto próprio de poder e enriquecimento ilícito. Estamos longe de alcançar um cenário positivo. A cultura da corrupção ainda é muito forte.
N O senhor acha que as pessoas começaram a associar a falência do estado à corrupção?
L Quando você relaciona à corrupção as mazelas, desvio de dinheiro, insegurança, falta de prestação de serviço básico, passa a ter uma capacidade maior de cobrar postura diferente. Mas isso não está na pauta do dia do cidadão. A cultura de combate à corrupção não está só no alto escalão. Olha quantas pessoas aceitam os cargos dos deputados. Pedem carros pipa, jogo de camisa para o seu time, enxergam o deputado como um shopping center de clientelismo.
N Com 22 anos de MPF, o senhor já investigou muitas máfias. O que essa nova clientela faz de mais audacioso, absurdo?
L O fato de haver indícios
de que eles tiveram conhecimento prévio da operação (Furna da Onça) é extremamente grave. Deixa a ideia de uma organização criminosa com capacidade para colocar ouvidos em diversos ambientes. Não é qualquer um que consegue esse nível de ingerência a ponto de saber que vai ser alvo de investigação sigilosa. Isso mostra o grau de impetuosidade e força dos personagens.
NE oque mais marcou nessa investigação?
L Todo o tempo desses deputados era para atuar em prol dos interesses políticos e financeiros deles. O que o sujeito faz com aparência de estar atuando em prol do interesse coletivo, como mandar carro pipa para abastecer uma comunidade, é com viés político. Um deputado (Luiz Martins) que se dispõe a ligar para o presidente da Cedae para dizer que precisa atender uma comunidade, não é por espírito público, mas por curral eleitoral. Ele disse: eu voto contra a privatização da Cedae e vocês não me atendem. Vai fazer isso depois da eleição. O cronograma não é a necessidade do cidadão, é a política.
N Interesse pessoal acima de tudo e de todos?
L A privatização da Cedae foi posta como contrapartida para o socorro ao Rio pela União. Isso foi assegurado no momento do pedido de socorro financeiro. O estado corre o risco de ter que pagar por isso. Você não pode exercer uma atividade relevante dessa com esse nível de irresponsabilidade.
N E com relação às artimanhas, armações?
L A gente percebe que 100% do tempo do deputado era em prol dos interesses deles ou do grupo político. As votações eram episódicas, feitas por necessidades pontuais. Esse caras são senhores feudais porque cada um tem a sua área territorial e dentro do estado e tem assessores que se prestam a fazer a movimentação financeira.
N São os chamados ‘soldados’ da propina?
L Diria que são os operadores da propina, fazem gerir o esquema de forma a preservar a figura do deputado. O dinheiro ilícito não pode transitar na conta do deputado. São imprescindíveis para que a máquina criminosa se movimente. São nomeados há décadas nos gabinetes. Se não me engano, o assessor do André Correa movimentou R$ 34 milhões. Recebemos um relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras com mais de 400 páginas.
N O que levou o senhor a cunhar a palavra ‘Propinolância’ para descrever a Assembleia Legislativa?
L Não quis ser desrespeitoso com a instituição. Reconheço que, como um dos pilares da Democracia, o Legislativo é fundamental para o fortalecimento do estado Republicano. Tenho respeito sobretudo pela Alerj.
N Mas ‘Propinolândia’ fez a diferença.
L ‘Propinolândia’ se refere às práticas negativas que foram por décadas instituídas naquele prédio histórico. Acho que esses personagens investigados denegriram a imagem da Alerj, que hoje está se confundindo com a ideia de esquemas, atuação de bastidores, por baixo dos panos, de traição do povo, e isso deve ser resgatado. Ali é um ambiente onde se deve exercitar o interesse público. Agora, a gente colocou o nome da Operação Cadeia Velha em homenagem à Alerj, Furna da Onça, aliás os dois nomes foram colocados por um colega da Lava Jato, Rodrigo Timóteo. Desta vez, não foi a PF.
N Qual a importância das parcerias da Lava Jato com outros órgãos?
L É um trabalho em equipe. Cada órgão com seu rol de atribuições se dedica para chegarmos ao resultado. A essência é ser composta por diversos órgãos, Polícia Federal, Receita Federal, outros de controle e o Judiciário.
N Antes, as investigações eram muito fechadas por causa de vazamento. É uma mudança de cultura?
L Os órgãos integram a equipe com a premissa do sigilo. Hoje, está presente a ideia de integrar para reagir melhor. Hoje, virou um protocolo recorrente.
N O senhor martelou a questão do vazamento. Há investigação sobre os responsáveis?
L Tem que apurar. Agora, o vazamento mostra também a postura de cada um. Ninguém quis mostrar inocência, dá a cara a tapa. O que a gente viu foi movimento para ocultar provas e dissimular informações. Os deputados, principalmente.
N Mas, muitas vezes, a Lava Jato do Rio prende e a Justiça solta.
L Quando você tem uma decisão que revoga um mandado de prisão, nos resta recorrer, resignados não ficamos. Neste trabalho (Furna da Onça), o Tribunal Regional Federal da 2ª Região em um acórdão inédito, unânime, decretou as prisões temporárias e preventivas. Mostra a força dos elementos obtidos e submetidos ao Judiciário. É claro que os tribunais superiores podem reformar.
N Mas teve uma época que o juiz Marcelo Bretas prendia e o ministro Gilmar Mendes soltava.
L A gente percebe que o juiz Marcelo Bretas se preocupa em ser técnico, as decisões dele que determinavam as prisões estavam corretas. Há pontos de vistas diferentes. Pode ser que o ministro Gilmar Mendes não tenha chegado à mesma conclusão. Faz parte do jogo processual.
N Muitos juristas contestam as delações premiadas.
L Não vejo razão técnica para os questionamentos à colaboração premiada. É parecido com o da interceptação telefônica. Quando elas apresentaram resultado, muitos gritaram que era interferência na vida privada que no final das contas era para criar embaraço à investigação. Supremo homologou. A colaboração é instrumento de acusação, mas de defesa. O caminho é incômodo, confessa o crime, fala da esposa, filho, devolve dinheiro, se submete a penas, uma série de mazelas. Você consegue devolução de valores e penas mais rápidas. Quando juristas torcem o nariz para a colaboração, o que a gente percebe é falta de conhecimento ou quer preservar algum mercado. Do ponto de vista técnico e processual não há justificativas para críticas.
N Chamam muito de justiça injusta, sem provas.
L Você não inventa fatos. Tudo que o colaborador trouxer tem que ter prova de corroboração. O alvo vai ter direito de defesa e apresentar prova em contrário. Não é benefício antiético, não é fácil, é fechado com a minoria. Veio para ficar.
N Vem muito mais Lava Jato por aí?
Estamos longe de alcançar um cenário positivo. A cultura da corrupção ainda é muito forte
Você inicia um trabalho e surgem outras frentes. A Lava Jato não está ainda no seu capítulo final
L Você inicia um trabalho e surgem outras frentes.
N As operações se entrelaçam muito?
L Há um volume grande de informações, nem sempre conseguimos usar. Mas pegamos links que se desdobram em outras operações. Um exemplo são as planilhas apreendidas com a assessora do Edson Albertassi (Shirlei Aparecida Martins Silva). Nosso enfoque era esquema de corrupção envolvendo Fetranspor, empreiteiras, com a Cadeia Velha, e a apreensão da planilha nos chamou a atenção da distribuição de cargos. Aliamos a outras informações, delação do Carlos Miranda, as coisas foram se entrelaçando e surgiu a Furna da Onça. A Lava Jato não está no capítulo final.