MURILO NO COMANDO
Ator estreia como diretor de cinema no filme ‘O Beijo no Asfalto’, baseado em história de Nelson Rodrigues
Foi de um jeito tímido, como se ainda não conhecesse o ramo, que Murilo Benício se apresentou pela primeira vez como diretor de cinema. Humilde, o artista admitiu que pensou em desistir do filme ‘O Beijo no Asfalto’, que estreia na próxima quinta-feira, mas o apoio dos amigos e de Débora Falabella fez a diferença nas horas mais difíceis.
O longa, que conta com a participação de Fernanda Montenegro, aposta em uma linguagem diferenciada e foi um desafio e tanto para Murilo, já que adaptar obras de Nelson Rodrigues são sempre uma honra com misto de frio na barriga. Para ele, a parte mais complicada foi conseguir apoio financeiro para seguir com o projeto. Além disso, começar na função com o texto de um ídolo, sem fazer alteração nenhuma, também aumentou o nível de dificuldade.
“O pior foi o acúmulo de funções, mas o resto até que foi tranquilo porque foi um filme de amigos, então todo mundo estava junto, querendo atingir o mesmo objetivo. Eu me preocupei em chegar no set já com tudo na cabeça para não ficar sem saber o que fazer, onde colocar a câmera. Todas as cenas foram desenhadas porque eu pensava na minha falta de experiência”, afirma o mais novo diretor.
A ideia de produzir o filme com um texto escrito há 60 anos surgiu quando Murilo assistiu ao espetáculo “A Serpente”, na companhia de teatro de Débora Falabella. Lá, o artista pensou muito sobre o quanto as obras de Nelson Rodrigues são impactantes e atuais. A história de ‘O Beijo no Asfalto’, por exemplo, aborda a intolerância, homofobia, machismo e até as fake news, muito discutidas recentemente.
“Estamos vivendo um período em que o filme está ainda mais atual. Eu me vejo, daqui a seis meses, fazendo uma
peça que vai ser censurada. Eu tenho esse medo. A sociedade está com um pé muito atrás”, defende Débora. Para a atriz, o fato de Murilo ter acreditado no potencial do longa e não ter desistido por falta de patrocínio foi muito importante, pois as pessoas ainda precisam conhecer Nelson Rodrigues.
“Ele é o nosso maior dramaturgo. Esse cara era para ser conhecido por todo mundo, ser estudado, deveria ter um museu sobre ele, mas as pessoas não conhecem”, lamenta a artista. “Agora, a gente vai entrar em um momento muito difícil, mas a minha esperança é que essa também pode ser a hora de a arte tocar as pessoas”, completa ela.
BASTIDORES
Não satisfeito com o tamanho do desafio que assumiu ao dirigir ‘O Beijo no Asfalto’, Murilo ainda resolveu gravar o longa todo em preto e branco, transitou entre o cinema e o teatro ao fazer as cenas em um palco e inseriu “notas de rodapé” ao longo da história mostrando a preparação dos atores, leituras do texto e observações ricas sobre Nelson Rodrigues em cenas que Fernanda Montenegro fica em evidência.
“Eu sabia que a ideia de mostrar os bastidores daria mais trabalho porque foram mais de quatro horas de discussão, então eu tinha que saber usar essas imagens para não puxar o freio de mão na história, mas fiquei satisfeito com o resultado. Quando terminamos o filme, eu ainda tinha dúvida se ele deveria se chamar ‘Beijo, o Processo’, mas a gente preferiu deixar o título do Nelson Rodrigues mesmo”, explica Murilo.
A ideia, é claro, não surgiu apenas para dar mais trabalho ao diretor. Como apreciador da arte desde a infância, Murilo diz que tinha curiosidade de entender como funcionava os bastidores dos filmes que mais gostava e concluiu que outras pessoas também podem ter a mesma dúvida, por isso resolveu trabalhar com essa narrativa em seu primeiro
“Estamos vivendo um período em que o filme está ainda mais atual. Eu me vejo, daqui a seis meses, fazendo uma peça que vai ser censurada. Eu tenho esse medo” MURILO BENÍCIO ator e diretor
filme como diretor.
“Acham, às vezes, que o trabalho do ator é muito raso. E, ali, é o momento que você percebe que é árduo, que vai a fundo mesmo. A gente não pega um texto, decora e sai falando. O trabalho do ator é muito maior e eu achava interessante dividir isso com o público”, afirma ele, que naturalmente não passou apenas por dificuldades durante o processo de gravação do filme.
Um dos “presentes”, que facilitou muito a jornada de Murilo à frente da obra de Nelson, foi a participação de Fernanda Montenegro no elenco, por exemplo. “Eu não ia chamar a Fernanda para o filme porque a Fernanda não é alguém que se convida, mas o Andrucha (Waddington) me encorajou. Ele botou muito isso na minha cabeça. E aí foi lindo, o projeto foi para outro lugar com a presença dela”, diz Benício.
A própria carreira como ator também contribuiu na hora de dar as coordenadas para a equipe. “Eu acho que uma das coisas que me anima muito a dirigir é esse contato com os atores. Eu tenho muitos anos de experiência atuando, então eu sei o que eles estão sentindo em todos os momentos. Eu sei quando o ator está com uma dúvida porque em algum momento eu já tive aquela dúvida. Isso ajuda muito. Essa troca foi o que mais me encantou ao dirigir”, conta.
A parceria e amizade com Lázaro Ramos, que segue firme desde a novela “Geração Brasil” (2014), também fez Murilo confiar que o protagonista da história, Arandir, estava em boas mãos. “A gente fica pesquisando, procurando nos atores algumas características. Mas foi bem na intuição. E o Lázaro fez um trabalho lindo, como eu imaginava que faria”, avalia o diretor, lembrando que a história começa quando o protagonista beija um rapaz atropelado, agonizando, mas vira alvo de preconceito. “Esse filme é lindo porque mostra que até na hora da morte o ser humano é julgado”, emenda Débora.