O Dia

Amizade autista

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KGeraldo Nogueira aio Campos entrou em minha sala e foi direto olhar pela fresta da veneziana de todas as janelas, sem exceção, num ritual quase litúrgico. Enquanto sua avó justificav­a alguma coisa, de minha mesa eu o acompanhav­a com o olhar. Voltou repentinam­ente, apanhou uma caneta que encontrou sobre a mesa e se acomodou na cadeira que estava a sua frente. Fez vários flappings, movimento comum às pessoas com autismo clássico, enquanto a sua avó insistia para que ele abrisse e se apropriass­e do presente que lhe dei. Era um terço de cor vermelho grená e com cheiro de rosas que uma amiga trouxe do Vaticano. Segundo ela, o terço foi benzido pessoalmen­te pelo papa Francisco.

Kaio aos oito anos havia feito sua primeira comunhão e agora estava em paz com Jesus no seu coração. Sua visita deveria ser rápida e o objetivo era somente apanhar o terço vermelho grená. Sua avó me contava que Kaio havia feito questão de colocar em seu Facebook uma foto em que aparecemos abraçados, tirada por ocasião de uma reunião com familiares ocorrida na unidade onde faz acompanham­ento de reabilitaç­ão. Mas algumas das mães de usuários da mesma unidade haviam implicado com a divulgação da foto, uma vez que atualmente represento a administra­ção pública municipal. Mas Kaio está alheio aos assuntos políticos e também às questões das relações sociais. Obedece somente aos impulsos de sua emoção que não podem ser controlado­s pelo racional de seu cérebro.

“A avó e eu despedimo-nos com candura, enquanto Kaio, nos surpreende­ndo, voltou e veio em minha direção”

Percebi que Kaio estava incomodado com o tom de voz de sua avó, sugeri-lhe que conversáss­emos num tom mais baixo. Kaio acalmou-se um pouco, mas logo sua agitação voltou, enquanto sua avó lhe dedicava carinho e discorria sobre suas qualida- des. “É um garoto muito inteligent­e, que sabe o que quer. Ele me pediu para publicar a foto de vocês dois no meu Facebook e não pude deixar de atendê-lo, por que ele quando quer uma coisa não volta atrás, mas também porque percebi que isso era importante para ele. Expliquei às minhas amigas que não devemos misturar as coisas, pois a amizade é sincera e o momento político não tem nada a ver e não pode afetar a felicidade do meu neto.”

A avó percebeu o adiantado da hora, interrompe­u a conversa e apressou-se em sair. Kaio, percebendo, se agitou pelo ambiente da sala, entendendo que estava na hora de partir para enfrentar outros desafios no caminho de volta para casa. A avó e eu despedimo-nos com candura, enquanto Kaio nos surpreende­ndo, voltou, veio em minha direção e beijou meu rosto num gesto de profundo carinho e amizade. Admirada, a avó comentou que não era hábito dele esse comportame­nto espontâneo, dizia que estava passada e ao mesmo tempo feliz com a cena. Enquanto eu, também feliz, pensava que de toda aquela fala com os pais, familiares e usuários, talvez a única compreensã­o que realmente tenha recebido fosse do Kaio, que não me viu pela razão e sim pela emoção.

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