O Dia

O hacker de 1960

- Luarlindo Ernesto

Oroubo dos mais de 700 quilos de ouro no Aeroporto de Cumbica, em São Paulo, neste fim de julho, me fez lembrar dos CR$ 27,6 milhões — uma fortuna, na época — roubados do trem pagador da Central do Brasil. Foi na manhã de 14 de junho de 1960, em Japeri. O dinheiro era destinado ao pagamento de salários de mais de mil funcionári­os das estações da antiga Linha Auxiliar da Central. Incluindo, nesse montante, o abono salarial de dois meses para os ferroviári­os. Os ladrões, chefiados por Tião Medonho, dinamitara­m os trilhos. A locomotiva descarrilh­ou. Invadiram o vagão onde estava o dinheiro e imobilizar­am o maquinista da velha Maria Fumaça e uns poucos funcionári­os. Fugiram, disparando suas armas, baleando dois ferroviári­os e matando um outro. Mas, um assunto leva a outro, que leva a outro, que leva a outro... Na época, eu tinha 17 anos e estava em “estágio” na “Última Hora”. Passei quase um mês em Duque de Caxias acompanhan­do as investigaç­ões da polícia. Aliás, a delegacia funcionava em uma velha casa residencia­l, transforma­da e adaptada para funcionar como delegacia de polícia, quase em frente à estação de trens da cidade. Na via principal, a antiga Rio-Petrópolis, bem pertinho, ficava a casa-mansão-fortaleza do deputado federal Natalício Tenório Cavalcanti, o Homem da Capa Preta. Ele, vez por outra, aparecia na

porta da delegacia para um bate-papo com os jornalista­s que acompanhav­am as diligência­s do roubo milionário. Era um excelente contador de histórias e eu gostava de ouvi-lo. Servia para passar o tempo. E essa aproximaçã­o me rendeu, bem mais tarde, várias matérias com o velho político. Em 1960, a telefonia no Brasil engatinhav­a. Para um telefonema entre Duque de Caxias (município do antigo Estado do Rio de Janeiro) e a Guanabara (ex-capital da República), a demora aproximada da chamada era de duas horas. Isso quando o número desejado não estivesse ocupado. Poucos telefones existiam naquela cidade da Baixada Fluminense. Tinha na delegacia, no Fórum, na Igreja, na Prefeitura, Câmara de Vereadores e, é claro, na casa do deputado. Os repórteres passavam as notícias por telefone, evitando o deslocamen­to até as suas redações. E o relacionam­ento com Tenório me proporcion­ava o conforto de esperar as ligações com o jornal na ampla sala da casa do parlamenta­r. Eu sabia que ele escutava, deixava um funcionári­o da “Luta Democrátic­a”, jornal dele, escutando as novidades que eu transmitia para a “Última Hora”. Tenório cansou de me alertar sobre o que se fala ao telefone: “Qualquer assunto importante não deve ser dito ao telefone. Só pessoalmen­te”. Ele temia as “escutas” clandestin­as. Mas achava normal, nesse caso, usando as minhas informaçõe­s no seu jornal diário. Eu sabia da manobra e não me importava. Os leitores do jornal dele não eram os mesmos do meu jornal. Tenório me usava e eu usava o telefone - tão precioso - dele. As “escutas” dessa época eram mais arcaicas. Somente uns quatro anos depois, quando aconteceu o golpe militar, em 1964, a arte da “escuta” já era mais profission­al. Os “grampos” eram instalados pelos “arapongas” dos serviços de inteligênc­ia. E, até os dias de hoje, com a chegada do computador, internet, satélites, celulares, hackers, se formaram os profission­ais no mundo. Mas o alerta do Tenório está mais presente em minha memória: “Assunto importante, só pessoalmen­te”. Se o assunto é recordar as escutas de conversas alheias, então vamos tentar algumas: os serviços de espionagem, com emprego de alcaguetes — dedos duros, delatores —, tem até os delatores profission­ais. E, hoje em dia, as delações premiadas, usadas principalm­ente nas guerras, não são novidades. Na minha mente, entretanto, acho que um dos mais badalados dos casos foi o de Judas Escariotes. Em troca de 30 dinheiros, “entregou” Jesus aos Romanos. Será que esse é o primeiro caso de espionagem (a escuta da época) da Era Cristã? Coluna publicada aos sábados

Alerta de quase seis décadas atrás continua valendo muito nos tempos atuais: ‘Assunto importante, só pessoalmen­te’

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil