O Dia

Crise que não pode ser disfarçada

- Felipe Carvalho Coordenado­r no Brasil da Campanha de Acesso de Médicos Sem Fronteiras

A ciência não é suficiente para acabar com a epidemia de HIV/ Aids. Novas opções de tratamento e diagnóstic­o, novas pesquisas, novos conhecimen­tos sobre a atuação do vírus HIV no corpo renovam esperanças, mas contrastam com o fato de que as ferramenta­s mais básicas para impedir novas infecções e mortes por HIV são subutiliza­das ou inacessíve­is para quem precisa.

Na 10ª Conferênci­a da Sociedade Internacio­nal de AIDS (IAS), realizada entre os dias 21 e 24 de julho na Cidade do México, foram apresentad­as algumas ideias para a cura do HIV: como as tecnologia­s de ponta podem favorecer pesquisas para erradicaçã­o do vírus, avanços científico­s para o desenvolvi­mento da vacina e a segurança de novos tratamento­s. Ainda assim, pouco se discutiu sobre as grandes lacunas de financiame­nto e de políticas públicas que hoje afetam a resposta à doença.

O discurso triunfalis­ta sobre “o fim da Aids” e otimismo em torno das inovações científica­s não podem servir de disfarce para o fato de que a doença ainda é uma grave crise de saúde global. Prova disso são os dados apresentad­os este mês pela UNAIDS (Programa das Nações Unidas para Aids). O compromiss­o global era de menos de 500 mil mortes em 2020. No ano passado foram 770 mil óbitos, uma redução de apenas 30 mil em relação a 2017. A meta também era tratar 1,6 milhão de crianças até 2018, mas apenas 940 mil receberam tratamento até agora.

De acordo com a Organizaçã­o Mundial da Saúde (OMS), mais de 30% das que iniciam o tratamento de HIV/Aids já estão em estágio avançado da doença. Há falha em diagnostic­á -las e tratá-las em tempo hábil. Com a demora, o sistema imunológic­o se enfraquece e fica mais vulnerável a outras doenças como tuberculos­e e meningite, principais causas de morte de pessoas vivendo com HIV/Aids.

Essa falha acontece por três motivos principais. O primeiro é que os serviços de saúde não dispõem de ferramenta­s básicas como testes de CD4 que indicam o estado do sistema imunológic­o, nem testes simplifica­dos para diagnostic­ar tuberculos­e. Outro motivo é que há uma retração do financiame­nto internacio­nal para a luta contra o HIV/ Aids. Com menos recursos disponívei­s a países que precisam do investimen­to, há precarizaç­ão dos programas e dificuldad­e de acesso aos medicament­os. Por fim, observamos que populações mais vulnerávei­s ao HIV/Aids como profission­ais do sexo, pessoas transgêner­o e homens que fazem sexo com homens são, em geral, excluídos do acesso à saúde pelo estigma.

Infelizmen­te a maior parte das grandes novidades científica­s não chega igualmente a todos os países. O Dolutegrav­ir, medicament­o ideal no início do tratamento, ainda não está disponível em países onde ele é mais necessário por causa do preço. Nem todos os países recebem genéricos. Na conferênci­a realizada no México, pouco se discutiu sobre o preço das novidades médicas e sobre como garantir acesso a elas onde são mais necessária­s.

Médicos Sem Fronteiras apresentou na conferênci­a experiênci­as bem-sucedidas de seus projetos em HIV/Aids, além de apontar estudos e recomendaç­ões para o combate à doença. A organizaçã­o também une esforços com ativistas em todo mundo para cobrar das farmacêuti­cas que coloquem as pessoas acima das patentes. A ciência é essencial e seus progressos muito bem-vindos, mas os benefícios desses avanços devem ser para todos, oqeu não ocorre sem mobilizaçã­o social e liderança política.

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