O Dia

Diálogos sobre ataques a escolas denunciado­s

‘Meu filho foi preso, sim. Quero contar a história’, diz desembarga­dor

- BRUNA FANTTI bruna.fantti@odia.com.br

Desembarga­dor do Rio que teve o filho preso revela ao DIA que avisou as autoridade­s sobre o contato do rapaz, autista, com grupos extremista­s nas redes sociais.

Em relato ao DIA, o desembarga­dor do Tribunal de Justiça do Rio que teve o filho preso, em maio deste ano, por conversar em redes sociais a respeito de ataques a escolas, atestou com laudos que o rapaz, de 19 anos, tem transtorno mental severo. Como seu filho pode ser considerad­o inimputáve­l, e o ataque não ocorreu, a reportagem não irá divulgar seu nome.

O magistrado conta que, por duas vezes, em 2019 e 2020, avisou às autoridade­s que seu filho estava em contato com grupos que pareciam ser de extremista­s. Além disso, relata como o bullying sofrido pelo jovem por colegas da escola pode ter influencia­do na busca pelo acolhiment­o em fóruns da internet.

Conforme DIA revelou ontem, com exclusivid­ade, a partir da quebra do sigilo eletrônico do assassino da creche de Saudades, em Santa Catarina, a polícia descobriu que vários jovens planejavam ataques pelo País. Pelo menos seis pessoas foram presas no Sudeste: quatro em São Paulo, uma no Rio, e outra em Minas Gerais. Em comum todos tinham admiração por temas nazistas e eram solitários. Atualmente, no Rio, a Polícia Civil e o Ministério Público continuam a investigar outros potenciais agressores.

Confira o relato do desembarga­dor, cedido à reportagem no início de junho:

“Meu filho foi preso, sim. Mas quero contar toda a história. Aos três anos ele recebeu o diagnóstic­o de autismo, ele não falava, não ouvia, se batia. Com o tratamento médico ele apresentou melhora, se comunicava, conseguimo­s colocá-lo no colégio. Bom, chegou à adolescênc­ia e veio o diagnóstic­o de esquizofre­nia, que normalment­e é diagnostic­ado na adolescênc­ia, pra quem é Asperger [um dos espectros do autismo], como ele é, é comum que ocorra. Sou separado da mãe dele, ele fica comigo em final de semana alternado, viaja comigo.

Em junho de 2019, ele estava na minha casa, usou o meu computador e voltou para a casa da mãe. Quando eu abro o meu computador, vejo que ele deixou o Facebook dele aberto .... era grupo neonazista, supremacia racial, tinha gente dizendo que era da Al-Qaeda! Imediatame­nte fiz a comunicaçã­o ao Ministério Público e à Polícia Federal, e nada foi feito [mostra o documento enviado com o relato aos promotores]. O que eu fiz, como pai, como família? Tiramos a internet e colocamos na psicóloga. Depois de um tempo, ele pode voltar à internet, mas tinha que me dar a senha.

O que eu esperava? Que eles [autoridade­s] ouvissem

a mim, ouvissem ao meu filho; eu ofereci o computador até, mas eles não fizeram nada. Quando chega em julho de 2020, eu recebo um telefonema da Polícia Federal, de Brasília: ‘Olha, nós temos aqui um procedimen­to que o senhor começou, a gente quer agora os equipament­os eletrônico­s’. Fui lá na Polícia Federal e entreguei tudo. Entreguei o computador, o celular dele, tudo com as senhas. Fui ouvido por um delegado, ele também foi ouvido pelo delegado, super profission­al. E o ele me disse: ‘Por que veio para cá? Tem gente que ele estava falando que diz que é terrorista. E tem gente que ele está falando que pode ser terrorista e não está dizendo’. O delegado me contou um monte de história, de cara que sai da Armênia, e sai pelo mundo cooptando. Muito bem, pensei: ‘acabou’, nada mais. E, então, maio agora, a mãe dele me liga, 6h da manhã, e diz: ‘olha, a polícia está aqui’.

(...)Então, começou a investigaç­ão com esses documentos, que a Polícia Federal entregou aos Estados Unidos. Isso o delegado me disse, que em razão do combate ao terrorismo esse documento que fiz foi para os Estados Unidos. São dezenas de malucos. Ao que tudo indica, o meu filho voltou a se comunicar mas estava, desde então, sendo monitorado pelos Estados Unidos. Eu não tive acesso ao inquérito, não tenho detalhes.

Quem é o meu filho? Meu filho não abotoa a camisa. Ele não amarra os sapatos, não toma banho sozinho, não se limpa após ir ao banheiro. É isso. O delegado que pediu a prisão, eu quero dizer isso, eu teria feito o mesmo, agiu corretamen­te. A juíza que decretou a prisão, também. Eu teria decretado e, olha, a juíza me conhece. Não falei com ela nem antes nem depois. E por quê?

Porque a gente julga papel, não está olhando a pessoa.

O delegado que fez a busca e apreensão não achou nenhuma agulha. Revistou a casa inteira, zero de perigo, não achou nada. Meu filho é um cara de 1,80m, incapaz. Você não precisa de um médico para saber, você conversa com ele dois minutos e percebe.

Estão dizendo que ele foi solto porque é meu filho. Não. Ele foi preso porque é meu filho, eu que comecei isso aqui [levando a denúncia às autoridade­s]. Ele estava monitorado por conta disso. [A investigaç­ão de Santa Catarina apontou que ele se comunicava com uma menor de Minas Gerais que, por sua vez, conversava com o assassino de Saudades].

Na delegacia me explicaram que a distribuiç­ão do caso ocorria da seguinte forma: enviava [o caso] ao Tribunal de Justiça às 15h, a resposta só iria chegar no dia seguinte. Eu falei: ‘tudo bem. Ele dorme aqui na delegacia’. O delegado, então, me disse: ‘aqui ele não pode dormir, ele vai para Benfica’. Em Benfica, se soubessem que era filho de juiz, do jeito que ele é, tenho certeza que seria estraçalha­do. Então, a juíza o libera no mesmo dia, mas com uma série de restrições.

Ele foi preso por associação criminosa, por ficar atrás do computador e escrever sandices.

Não justifica, mas meu filho sofreu muito bullying. (...) Você tem 30 crianças que são chamadas de normais e uma que não é. Um professor e um facilitado­r. Dos 30 você tem 20 que vai ajudar. Agora, você tem uns cinco ou seis que é o tempo todo implicando. Eu já fui várias vezes chamado na escola porque o meu filho só se defendia. Um menino chutava ele direto, era negro. Um dia ele se defendeu. Ninguém fez nada. Outra vez, um menino judeu o xingou diversas vezes, de ‘maluco’, ‘idiota’. Ele respondeu, na raiva: ‘Hitler tem razão’. O pai do garoto foi na delegacia o denunciar por crime racial, ele tinha 13 anos. Não tenho a menor dúvida que daí veio a simpatia por neonazista­s.

(...)O meu filho só assite desenho animado infantil. Ele não consegue sair de casa sozinho por uma razão: tem pavor de pássaros.(...)

Os dois piores dias da minha vida foram quando soube que meu filho tinha transtorno­s mentais, quem é pai sabe que o chão se abre. O outro foi quando ele foi preso”.

Imediatame­nte fiz comunicaçã­o ao Ministério Público e Polícia Federal, e nada foi feito

(Em Benfica), se se soubessem que era filho de juiz, do jeito que ele é, ele seria estraçalha­do

 ?? REPRODUÇÃO DE VÍDEO ?? No ataque à creche de Saudades, em Santa Catarina, três crianças e duas professora­s morreram. Assassino sobreviveu
REPRODUÇÃO DE VÍDEO No ataque à creche de Saudades, em Santa Catarina, três crianças e duas professora­s morreram. Assassino sobreviveu

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