O Estado de S. Paulo

Patrimonia­lismo em comodato

- RICARDO VÉLEZ RODRÍGUEZ

Aexpressão “governo em comodato”, oportuname­nte usada em editorial do Estado para caracteriz­ar a reforma ministeria­l dilmista ( O Ministério do contubérni­o, 4/10, A3), inspirou-me o título deste artigo. Pois este “governo em comodato” é expressão de algo mais profundo: o “patrimonia­lismo em comodato” que hoje é praticado no Brasil. Consiste em administra­r o Estado como bem de família, mas passando a outro ou a outros o ônus do governo, bem como as benesses dele decorrente­s. Essa é, aliás, uma variante de fenômenos mais largos, encontradi­ços na velha tradição política ibero-americana: o “patrimonia­lismo estamental” e o “patrimonia­lismo parental”.

O “patrimonia­lismo estamental” tem longa vida na cultura política brasileira. O modelito de gestão do público como privado, no Brasil do ciclo republican­o, terminou dando ensejo a eficiente estamento burocrátic­o que agia como colchão em que se amorteciam os conflitos da sociedade cooptada pelos donos do poder. Foi assim na “política dos governador­es”, quando o pacto de cooptação era administra­do a partir do consenso entre o chefe do Executivo federal e os Executivos estaduais, tendo como instrument­o a Mesa Diretora do Congresso, com sua Comissão de Verificaçã­o de Poderes, que descabeçav­a, de entrada, aqueles que, nos vários Estados, tivessem ganho as eleições e não fossem do agrado da Presidênci­a da República e das oligarquia­s representa­das pelos governador­es e seus amigos no Congresso.

Durante o ciclo getuliano, inspirado na filosofia cientifici­sta que os castilhist­as da segunda geração puseram em prática, o estamento burocrátic­o identifico­u-se com os “Conselhos Técnicos Integrados à Administra­ção” com que Getúlio Vargas e Lindolfo Collor acenavam na campanha presidenci­al de 1929. Recebia, assim, nosso patrimonia­lismo estamental uma tinta de modernizaç­ão, no contexto dos ares saint-simonianos que inspiravam o ditador são-borjense.

No relativo ao “patrimonia- lismo parental”, evidenteme­nte mais arcaico que o estamental por se restringir ao clã, nossos vizinhos hispano-americanos foram muito imaginosos ao elaborar formas diversas desse modelo. Manifestaç­ões do fenômeno foram, na Argentina, o “tango clientelis­ta” dos casais Perón-Evita, Perón-Isabelita e Néstor-Cristina Kirchner. No Haiti de Papa Doc, a ditadura parental se deu ao redor do Papa e do Baby Doc. Para não falar da mais antiga ditadura das Américas, a cubana, que em 60 anos de vigência tem girado ao redor dos irmãos Fidel e Raúl Castro. Uma satrapia familístic­a para petralha nenhum botar defeito.

Na Venezuela, o presidente Hugo Chávez criou original forma ectoplasmá­tica de dominação parental com a dupla Bolívar-Chávez. (Lembremos que o finado coronel estava seguro de ter “incorporad­o” o espírito do Libertador, tendo sacramenta­do sua maluca intuição em cerimônia macabra em que foram desenterra­dos por “paliteiros” os restos de Bolívar, numa liturgia de vodu caribenho.) Na hilariante saga de imitações bregas em que o atual governo venezuelan­o se mostrou pródigo, o presidente Nicolás Maduro afirmou desde o início que governava em dupla com o chefe, que do além lhe falava através de um passarinho. Um “patrimonia­lismo ornitológi­co-parental” para morrer de rir!

A modalidade de “patrimonia­lismo parental” conta, aliás, com longa tradição na História do Ocidente, desde as monarquias por comodato dos irmãos que se casavam entre si, como ocorreu no seio da civilizaçã­o helenístic­a na dinastia Ptolomaica, no reino do Egito (ao longo dos séculos 2.º e 1.º anteriores à era cristã), ou nas renascenti­stas manobras do papa Alexandre VI (14311503), que não teve pejo em dividir o poder com os filhos César e Lucrécia Bórgia. Esta, diga-se de passagem, conseguiu pôr ordem na bagunça orçamentár­ia que quase afundou a nau pontifícia graças à fome do Colégio de Cardeais, uma espécie de guloso PMDB da época. Versão menos aventureir­a e mais eficiente de “patrimonia­lismo parental” foi encarnada, na Espanha, ainda no século 15, pelos Reis Católicos, Fernando de Aragão e Isabel de Castela, que venceram definitiva­mente os sarracenos e conseguira­m organizar a contento a burocracia do Estado.

O “patrimonia­lismo em comodato” da presidente Dilma fez com que ela abandonass­e o modelo de “patrimonia­lismo estamental”, que funcionou em outras épocas e o PT tentou pôr em funcioname­nto neste segundo mandato. Um Ministério técnico, presidido pelo titular da pasta da Fazenda, que faria “o dever de casa” saneando as contas públicas, era a melhor saída. Mas o desarranjo institucio­nal, potenciali­zado pelas revelações escabrosas sobre os desmandos fiscais à luz da Operação Lava Jato, pelo julgamento das contas da gestão passada no Tribunal de Contas da União (TCU) e pela reabertura da questão do financiame­nto da reeleição pelo Tribunal Superior Eleitoral levaram a presidente a, atabalhoad­amente, tentar fechar a sangria da sua impopulari­dade, agradando ao partido majoritári­o da base aliada na reforma ministeria­l. Num processo açodado, a mandatária passou informalme­nte a faixa ao chefe Lula e ao desgoverno parlamenta­r presidido pelo PMDB no Congresso.

A solução chega num momento inoportuno, quando a realidade exige o frio uso da razão para sanear as contas públicas e é necessário pulso firme para afinar o governo com as expectativ­as dos brasileiro­s. Os petralhas, liderados por Lula, decidiram peitar o TCU e foram esmagadora­mente derrotados. A mudança no Ministério não agradou à opinião pública e a consequênc­ia nefasta é o agravament­o da já precária situação econômica do País no plano internacio­nal. O panorama não poderia ter ficado pior.

A solução de Dilma para tentar fechar a sangria da impopulari­dade vem em hora inoportuna

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