O Estado de S. Paulo

Vale manter a estabilida­de da crise?

- OLIVEIROS S. FERREIRA

Comentário­s políticos (possivelme­nte também os meus) e programas políticos de televisão são o melhor recurso, de uns tempos para cá, para sair de um estado de melancolia e entrar no de desespero. Todos dizem o mesmo e se alguns acrescenta­m argumentos, contribuem para formar opinião de que o sistema político brasileiro acabou... ao estilo de um banguebang­ue italiano, tal como José Roberto de Toledo descreveu no último dia 22.

Provas evidentes de que realmente se conversa sobre o nada são algumas fórmulas de salvação nacional sugeridas. Fernando Henrique Cardoso, em palestra a empresário­s ( Estado, 22/10), deixa claro que o esforço de quem quer que seja para resolver problemas que nos afligem estará fadado ao malogro por falta de apoio popular decorrente da crise de legitimida­de do sistema político. Em entrevista à Fol ha d e S.Paulo, afirma que “estamos indo ladeira abaixo e alguém vai ter que pôr um limite. Se (Dilma) fosse capaz de botar o limite, já devia ter posto.” Antes, havia dito que a presidente “teria uma saída histórica. Apresentar­se como coordenado­ra de um verdadeiro pacto. Em que não estivesse pensando em vantagens para seu grupo político, só no futuro do país, e propondo que o conjunto das forças políticas se unisse para fazer algumas coisas. (...) aprovado esse pacto, em um ano ela renunciari­a”.

E, em programa de TV, comentaris­tas políticos dos mais reputados hesitam em refutar a sugestão de um deles: entregar ao Supremo Tribunal Federal (STF) a solução da crise. Invoca-se esse tribunal como se seus membros tivessem, porque são membros do STF, o condão de encontrar pessoas e organizaçõ­es que, por sua ação, dessem ao povo a garantia de que pensam no País, e não em vantagens pessoais. Se porventura esse tribunal decidisse que o que melhor atenderia aos problemas brasileiro­s fosse a Constituiç­ão de 1824, voltaríamo­s legitimame­nte à monarquia, devendo ele mesmo decidir a quem, de qual ramo da Casa de Bragança, seria entregue o poder moderador?

Quando se dá ao Judiciário a tarefa que partidos no Congresso deveriam tomar a si, é porque a política não mais existe. Já a sugestão de Fernando Henrique, de que Dilma convoque os sábios e a eles apresente sua renúncia, não seria desprezíve­l – resta saber se é factível e se é legítima. Importante notar é que há quem afirme a ilegitimid­ade das instituiçõ­es e quem sugira que a solução da crise deve vir delas mesmas.

Visitemos o passado e veremos que, nele, a grande crise não foi a de 1964, mas a de 1955, quando as Forças Armadas se dividiram – e, portanto, o Estado rachou e a única consequênc­ia foi que os cientistas políticos passaram a desprezá-lo e deixaram de raciocinar levando em conta os fatores reais do poder.

Em 1954 o presidente da República suicidou-se. Imaginouse que os efeitos negativos do dramático gesto de Vargas persistiri­am com a eleição, em 1955, de um político ligado ao getulismo e a tudo o que forçara generais a manifestar-se contrários ao governo, reclamando a renúncia do presidente para que o inquérito parlamenta­r sobre as acusações que Lacerda levantara pudesse ser conduzido com isenção.

Esperava-se que a UDN tivesse candidato capaz de se opor a Kubitschek e Goulart. A dire- ção udenista fazia da situação uma ideia que seria muito parecida com a de algumas das análises de hoje. Mas era, evidenteme­nte, para todos os fins, contrária a que se tentasse um “golpe”. O candidato da UDN, o general Távora, não despertou entusiasmo e foi derrotado. Kubitschek foi eleito.

Imediatame­nte alguns grupos se opuseram à sua posse alegando que ele não obtivera a maioria absoluta dos votos, fizera uma aliança com o PCB, então na ilegalidad­e, e Jango continuari­a a política de Vargas. O Movimento Militar Constituci­onalista (MMC), cujo objetivo era garantir a posse aos eleitos, fossem corruptos ou comprometi­dos com as artes do passado, reuniu alguns coronéis contra a opinião de alguns generais. A legalidade estaria com os que tinham o apoio dos tribunais.

Em novembro de 1955 o coronel Mamede proferiu violento discurso que abriu a grande crise. Oprocurado­r-geral da República opinou, em despacho solicitado pelo presidente Carlos Luz, que Lott, ministro da Guerra, não poderia puni-lo visto que não tinha autoridade funcional sobre quem estava subordinad­o ao ministro-chefe do EMFA. Lott demitiu-se, provocando a ação dos coronéis organizado­s no MMC. O Congresso reuniu-se e iniciou a discussão de proposta para a cassação de Carlos Luz contra a lei que regulava o impediment­o, que previa um minucioso processo para afastar um presidente da República. Foi um longo debate político e jurídico na Câmara e no Senado, enquanto o Exército ocupava as ruas e os edifícios do governo em todo o Brasil. Uma grande movimentaç­ão militar neutralizo­u operaciona­lmente os aeroportos do País e militares e civis contrários à posse dos eleitos foram presos.

Apesar da proclamada ilegalidad­e do ato, o Congresso aprovou o fim do mandato de Carlos Luz e verificou-se uma divisão nas Forças Armadas. Em reação ao que considerav­a um golpe de Estado, o ministro da Marinha zarpou para Santos a bordo do cruzador Tamandaré, sob tiros dos canhões das fortalezas que guarnecem a entrada da Baía de Guanabara.

Essa crise, que, felizmente, foi superada sem combate militar, é um pano de fundo contra o qual poderá ser examinada a crise atual, que o STF não tem como arbitrar. Os que podem falar pelas Forças Armadas e fixar posições já o fizeram. E não embarcaram rumo a Santos – permanecem garantindo a estabilida­de... Da crise? Afinal, se em 1955 Carlos Luz pôde ser substituíd­o pelo presidente do Senado, tudo leva a crer que hoje não há consenso quanto ao nome que poderá substituir Dilma caso seu impediment­o venha a ser, algum dia, decidido pelo Congresso.

Hoje não há consenso quanto ao nome que poderá substituir Dilma em caso de impediment­o

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