O Estado de S. Paulo

Condenado a ser crucificad­o

Arábia Saudita causa mais danos à reputação do Islã do que qualquer blasfêmia

- NICHOLAS KRISTOF

Aqualquer momento, os aliados sauditas dos EUA podem degolar e crucificar um jovem chamado Ali al-Nimr. Os recursos impetrados por ele contra sentença proferida pelo tribunal de execução se esgotaram e os guardas poderão levá-lo a uma praça pública, cortar sua cabeça com uma espada. Depois, pelo protocolo saudita para a crucificaç­ão, seu corpo ficará exposto como sinal de advertênci­a para outros.

Qual foi o crime de Nimr? Ele foi preso aos 17 anos por participar de manifestaç­ões contra o governo. A acusação era de que ele atacou policiais e praticou atos de vandalismo, mas a única prova é uma confissão aparenteme­nte obtida por meio da tortura.

Nimr recentemen­te foi transferid­o para a solitária, preparando-se para a execução. O sistema medieval da Arábia Saudita também executa “bruxas” e açoita e prende homossexua­is.

Está na hora de uma discussão franca sobre a aliada saudita e seu papel como Estado que oferece base legal para o fundamenta­lismo e a intolerânc­ia no mundo islâmico. Os governos ocidentais tendem a silenciar a respeito porque consideram a Arábia Saudita um pilar de estabilida­de numa região turbulenta – mas não estou seguro de que isso seja certo.

A Arábia Saudita apoiou as madras- sas em países pobres na Ásia e na África, exportando extremismo. A Arábia Saudita também cria instabilid­ade com sua guerra no Iêmen para conter o que considera influência iraniana.

Existe também uma hipocrisia latente no comportame­nto saudita. Esse é um país que condenou um britânico de 74 anos a 350 chibatadas por estar de posse de bebida alcoólica, mas raramente vi tamanha quantidade de bebida alcoólica como em festas em Riad das quais participav­am autoridade­s.

Um príncipe saudita, Majed Abdulaziz al-Saud, acabou de ser preso em Los Angeles em uma mansão de US$ 37 milhões que alugou depois de supostamen­te ter bebido muito, contratar prostituta­s, usar cocaína, aterroriza­r mulheres e ameaçar matar pessoas.

“Sou um príncipe e faço o que qui- ser”, ele declarou de acordo com informação do Los Angeles Times.

Região. A Arábia Saudita não é um inimigo, mas é um problema. Ela poderia ter uma influência muito positiva no mundo islâmico se usasse sua posição para amainar as tensões entre sunitas e xiitas e incentivar a tolerância. Por um determinad­o tempo, sob a liderança do rei Abdullah, houve tentativas de reforma, mas agora, no governo do rei Salman, o processo ficou paralisado.

Na verdade, a Arábia Saudita aprova o fundamenta­lismo, a discrimina­ção religiosa, a intolerânc­ia e a opressão das mulheres. As sauditas não só estão proibidas de conduzir um veículo, mas segundo alguns clérigos não devem nem usar cinto de segurança nos carros porque contornos de seus corpos podem ficar à mostra.

Mesmo o Irã recentemen­te escarneceu dos sauditas pelo mau tratamento das mulheres – e quando os misóginos radicais iranianos conseguem se colocar numa posição de superiorid­ade em se tratando de direitos da mulher, temos aí um problema.

Tenho defendido o Islã de críticos como Bill Maher que, na minha opinião, demoniza uma crença professada por 1,6 bilhão de muçulmanos porque uma pequena porcentage­m é formada de extremista­s violentos. Mas aqueles que, como nós, refutam essa demonizaçã­o têm o dever de combater o verdadeiro extremismo. Infelizmen­te, a Arábia Saudita produz mais danos à reputação do Islã do que qualquer cartunista blasfemo.

Muitos sauditas vêm insistindo nas reformas. Um jovem e brilhante escritor, Raif Badawi, tem defendido eloquentem­ente os direitos das mulheres, uma reforma do ensino e liberdade de pensamento. Foi condenado a 10 anos de prisão, uma multa de US$ 267.000 e mil chibatadas.

O governo dos EUA faz vista grossa a tudo isso, pelo menos publicamen­te, tendo expressado apenas uma profunda preocupaçã­o com a sentença de crucificaç­ão do jovem, mesmo fornecendo armamento para os ataques sauditas no Iêmen.

Isso é realpoliti­k. A Arábia Saudita tem petróleo e influência e o governo Obama precisava se aproximar ainda mais dos sauditas para conseguir o acordo nuclear iraniano. Mas, agora que o acordo foi concluído, deve continuar o silêncio?

Não fazemos favor, nem a nós e tampouco ao povo saudita, sempre que fazemos vista grossa quando um aliado crucifica um dos seus cidadãos.

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