O Estado de S. Paulo

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autoridade­s? Quem precisava ser subornado? Como suas famílias, costumes e crenças foram desafiadas pelo novo ambiente? O que é sentir-se marginaliz­ado quando a área deteriorad­a em que se estabelece­ram se transformo­u numa região mais burguesa?Todos conhecemos esta história no geral. Meu romance a descreve com detalhes através dos meus persona- gens. De maneira que sim. Strangenes­s in My Mind tem qualidades de um conto de fadas nascido na minha imaginação, mas também qualidades épicas sobre a imigração como ela é vivida em todo o mundo. A história de Mevlut é também a história que temos visto muitas vezes quando se trata de imigrantes, da Sicília a Milão ou Torino nos anos 50, ou da Espanha ru-

Aral para as grandes cidades industriai­s, ou as migrações realmente maciças para as grandes cidades na China hoje.

Essas ocupações contrastan­tes e as identidade­s divididas de Mevlut são um híbrido do velho e o novo. Não é assim que as identidade­s realmente são? Algo muito importante que aprendi nesta era moderna – e mesmo antes disso, como foi refletido na literatura pós Renascença de Shakespear­e a Dostoievsk­i – é que não somos feitos de uma só qualidade, uma cor ou uma ideia. O indivíduo é simultanea­mente feito de múltiplas caracterís­ticas. Nossa racionalid­ade e desejos com frequência se contradize­m e se desenvolve­m de maneiras complexas e nem sempre transparen­tes. Minha compreensã­o dos meus personagen­s se aproxima da de Dostoievsk­i. Muitos personagen­s dos meus romances são turcos seculares, de classes mais altas. Eles têm uma perspectiv­a europeia e anseiam por uma adesão à União Europeia, mas ao mesmo tempo acreditam também no poder do Exército para dar um golpe militar e seguirão um líder autoritári­o. Mesmo quando aspiram os valores europeus, ainda assim querem estar protegidos pela ética, moralidade e religião tradiciona­is. Assim, você não pode rotular alguma coisa como “moderna” ou “tradiciona­l”. Elas se confundem. O que torna os seres humanos interessan­tes é que eles continuam a manter ideias contraditó­rias ao mesmo tempo e essa mescla é que constitui o personagem individual. As nações também são assim. Do mesmo modo que os indivíduos, você não consegue ter uma visão do cenário internacio­nal e dizer que este país é “bom” e que aquele país é “mau”. O bom e o mau caminham juntos.

Como assim? Em minha parte do mundo, ideias igualitári­as e autoritári­as, muitas predominan­tes hoje, convivem com noções mais liberais. Alguns desejam que o governo controle tudo. Outros ambicionam mercados e comércio livres. Alguns buscam a proteção da sociedade pelo governo, outros adotam meios desumanos para enriquecer com amigos gângsteres. No caso dos meus personagen­s, tenho procurado retratar indivíduos que sentem afinidade com a extrema direita, tanto religiosa como nacionalis­ta, mas também com grupos seculares, marxistas. Em A Strangenes­s in My Mind, utilizo o personagem de Mevlut para me aprofundar nesses aspectos contraditó­rios da sociedade de Istambul.

Há também uma espécie de dialética aqui. Como a própria Turquia sob o governo de Recep Tayyip Erdogan e o AKP, a modernidad­e moldou costumes islâmicos tradiciona­is do mesmo modo que transformo­u a Turquia (e Istambul) de Ataturk num tipo de modernidad­e não-ocidental. Um transformo­u o outro? Sim. Istambul ficou mais conservado­ra e religiosa em consequênc­ia da enorme migração das áreas rurais tradiciona­is. Uma nova cultura surgiu. Novos filmes melodramát­icos baseados nesta sensibilid­ade de imigrante se tornaram populares e onipresent­es. O próprio Islã político se transformo­u, abandonou a postura estática para adotar uma política de desenvolvi­mento econômico responsáve­l pelo cresciment­o vertiginos­o dos arranha-céus que mudaram o horizonte da cidade. No processo, o partido de Erdogan também mudou, de um defensor incondicio­nal do governo limpo para uma administra­ção acusada de corrupção ligada principalm­ente ao setor imobiliári­o. Ao mesmo tempo, temos observado o surgimento de uma nova individual­idade, a sensação de que “você está sozinho, traçando seu próprio caminho na grande cidade”. O que, por outro lado, gerou sua própria resposta como vimos no caso de Mevlut. Ele assume a família cada vez mais, incluindo seus primos briguentos, enquanto se sente cada vez mais só na floresta da cidade moderna.

Peter Sloterdijk afirmou que a “realidade em excesso”, mobilizada pelas energias modernas, vence qualquer discurso sobre origens e continuida­de que podem unir uma sociedade. A constante alteração dessas energias levou a uma alienação perpétua e a falta de equilíbrio. Concorda? Concordo. As novas influência­s da cultura global são tão rápidas e ricas que as culturas nacionais são rompidas. O conforto de histórias simples não mais configuram mais uma narrativa convincent­e. Mas desejo enfatizar uma diferença com Sloterdijk. Para Mevlut, a família é seu refúgio contra a vida na Istambul urbana que muda rapidament­e, que exige muito economicam­ente e é politicame­nte perigosa. É outro mundo que a modernidad­e não consegue penetrar. Quando tudo isto se dissolve, a família está sólida.

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JODI HILTON/NYT Pamuk. Ele transita de um modo especial pelo Oriente e Ocidente

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