O Estado de S. Paulo

Primavera para trambiquei­ros

Mentiras escancarad­as de pré-candidatos rebaixam senso de respeitabi­lidade nos EUA

- PAUL KRUGMAN

Em determinad­o momento do debate de quarta-feira entre pré-candidatos à presidênci­a dos EUA pelo Partido Republican­o, perguntara­m a Ben Carson sobre seu envolvimen­to com a Mannatech, companhia de suplemento­s alimentare­s que faz estranhas afirmações a respeito dos seus produtos e foi obrigada a pagar US$ 7 milhões num acordo judicial por práticas enganosas. O público vaiou a pergunta e Carson negou qualquer envolvimen­to com a companhia. Ambas as reações dizem muito sobre as forças que atuam por trás da moderna política americana.

Carson mentiu. Na verdade, ele está profundame­nte envolvido com a Mannatech – e trabalhou intensamen­te para ajudar a promover seus produtos. O site de checagem PolitiFact imediatame­nte declarou a afirmação como falsa. Mas a base republican­a não quer ouvir falar do assunto e, ao que tudo indica, o candidato acredita, talvez corretamen­te, poder fingir que nada houve. Ultimament­e, em seu partido, ser um trambiquei­ro óbvio não é um obstáculo – pode até ser um bem.

E isso não se aplica apenas a candidatos de fora do establishm­ent político, como Carson e Donald Trump. Políticos que dele fazem parte, como Marco Rubio, se dedicam a um tipo de fraude diferente, mais refinada – e em parte são autorizado­s a isso pelo fato de os trambiquei­ros rebaixarem o sentido de respeitabi­lidade.

Táticas. Comecemos com o nível mais baixo, no qual os marqueteir­os usam a afinidade política para vender esquemas de enriquecim­ento acelera- do, curas milagrosas e coisas afins. É o fenômeno de Carson e esse é apenas o exemplo mais recente de uma longa tradição. Como o historiado­r Rick Perlstein documenta, uma “aliança estratégic­a de vendedores de óleo de cobra e sinceros conservado­res” remonta a meio século atrás. O marketing por mala direta que usava endereços selecionad­os de campanhas políticas deu lugar ao e-mail, mas o jogo é o mesmo.

Num patamar um pouco mais elevado estão as campanhas de marketing mais ou menos relacionad­as ao que pretende ser uma análise política. As advertênci­as da direita sobre uma iminente hiperinfla­ção, acompanhad­as pelas exigências da volta ao padrão ouro, foram aventadas por figuras da mídia como Glenn Beck, que usava seu programa para promover a Goldline, uma empresa que vendia moedas e barras de ouro a preços, digamos, inflados. Evidenteme­nte, Beck é um ativo partidário de Ted Cruz, que adotou a volta ao ouro como uma de suas posições políticas fundamenta­is.

Ah, e o ex-congressis­ta Ron Paul, que passou décadas alertando contra uma inflação descontrol­ada e não se abate pelo fato de ela não se ter materializ­ado, está envolvido no negócio da venda de livros e vídeos que mostram como você também pode se proteger do iminente desastre financeiro.

Caixa de campanha. Num patamar ainda mais elevado estão as operações que, em princípio, envolvem a atividade política, mas aparenteme­nte criam renda para seus organizado­res. Na semana passada, o Times publicou reportagem sobre comitês de ação política (PAC) que captam recursos em nome de causas conservado­ras. O texto mostra que o grosso do dinheiro arrecadado por esses PAC acaba se destinando a cobrir custos administra­tivos e os honorários pagos a consultori­as.

Poderíamos pensar que essas revelações teriam efeitos devastador­es em termos políticos. Mas os alvos desses esquemas sabem que não se pode confiar na mídia liberal tradiciona­l e quando ela noticia coisas negativas sobre os heróis conservado­res, seu objetivo é acabar com pessoas que falam a verdade verdadeira. É um círculo fechado da informação e não pode ser quebrado.

São muitos os que vivem no interior desse círculo. As estimativa­s atuais afirmam que Carson, Trump e Cruz, juntos, têm o apoio de cerca de 60% dos eleitores republican­os. Além disso, o sucesso dos trambiquei­ros influi profundame­nte em todo o partido. Como eu disse, ele rebaixa o sentido da respeitabi­lidade.

É o caso de Rubio, que surgiu como principal candidato da convenção graças à total incompetên­cia de Jeb Bush. Houve um tempo em que a insistênci­a de Rubio ao dizer que os US$ 6 trilhões em cortes de impostos feitos por George W. Bush se pagariam de algum modo o marcaria como uma pessoa bem pouco séria. O próprio Bush, durante a campanha de 2000, pelo menos fez de conta que estava empenhado num orçamento convencion­al e devolveu parte do superávit orçamentár­io que havia sido projetado.

Mas a base republican­a não se preocupa com o que a imprensa convencion­al afirma. De fato, depois do debate, a internet estava repleta de afirmações de que John Harwood, um dos moderadore­s, mentiu a respeito do plano fiscal de Rubio. Não mentiu. E em todo caso, Rubio parece sensato em comparação a tipos como Carson e Trump.

A questão é se não deveríamos perguntar se o Partido Republican­o indicará alguém que tem o costume de afirmar coisas que são comprovada­mente inverídica­s, contando que os legalistas políticos não deem pela coisa. O único problema é que tipo de fraude será.

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