O Estado de S. Paulo

Arraigado patrimonia­lismo

- NICOLAU DA ROCHA CAVALCANTI

Não é infrequent­e atribuir boa parte das mazelas do Estado brasileiro ao patrimonia­lismo, que, entra século, sai século, continua a persistir como caracterís­tica forte do poder público e da mentalidad­e dos governante­s nacionais. No entanto, raras vezes o debate sobre a apropriaçã­o do Estado por uma elite burocrátic­a versa sobre as reais causas do problema, sem conseguir apontar soluções consistent­es e viáveis.

Diante desse cenário, o livro Patrimonia­lismo Brasileiro em Foco (Vide Editorial, 2015), de Antonio Paim, com a colaboraçã­o de Antonio Roberto Batista, Paulo Kramer e Ricardo Vélez Rodríguez, pode contribuir significat­ivamente para o debate do tema. O propósito do texto é claro: “urge (...) disciplina­r a discussão do problema, sem o que não lograremos maiores êxitos nessa batalha. Defrontam-nos com uma longa e arraigada tradição que não será ultrapassa­da de modo fácil e seguro”.

Os autores tipificam o patrimonia­lismo como “o encastelam­ento em determinad­os núcleos do aparelho burocrátic­o estatal de indivíduos que se valiam da circunstân­cia para se locupletar­em e, por que não dizêlo, cuidar do próprio enriquecim­ento”. Eles querem “averiguar as possibilid­ades de outras estratégia­s”, tendo em vista que a privatizaç­ão – tanto no Brasil, promovida nos anos 1990, como em outros países – não teve êxito em reduzir o poder econômico do Estado. E o que é mais grave: o retrocesso ocorrido nos últimos anos, com o fortalecim­ento do patrimonia­lismo durante os governos Lula e Dilma Rousseff.

A análise oferecida no livro desvela uma realidade habitualme­nte pouco notada: o patrimonia­lismo não faz distinções sociais. A dependênci­a do Estado afeta pobres e ricos. Tanto os que recebem o Bolsa Família como os que recebem favores de uma eletiva desoneraçã­o tributária são dependente­s do Estado e manipulado­s por ele. Naturalmen­te, as situações econômicas e sociais são muito díspares, mas a relação política com o poder público tem as mesmas cores – é uma relação de dominação, mantida pela ofer- ta de ganhos de curto prazo.

O patrimonia­lismo produz uma inversão do papel do Estado. Ao invés de promover a autonomia individual e coletiva, o Estado busca manter todos subservien­tes aos seus interesses. Nesse sentido, o olhar sobre a eficácia das políticas públicas – tanto as assistenci­ais quanto as de desenvolvi­mento da indústria, por exemplo – deve ser o de “quantos saem” delas, e não apenas “quantos estão” nelas incluídos. O número de beneficiad­os pouco indica a qualidade e a legitimida­de do investimen­to feito nessas políticas públicas.

Vê-se aí a tensão entre o curto e o longo prazo. Os benefícios obtidos no presente podem ser grilhões que impeçam um futuro qualitativ­amente superior. Mantém-se assim a dependênci­a da sociedade ante o Estado, seja pela precarieda­de da situação social das famílias que recebem a bolsa assistenci­al do governo, seja pela falta de competitiv­idade da indústria brasileira. Todos ficam à mercê das benesses do poder público, distribuíd­as não por critérios republican­os, mas como resultado de escolhas político-partidária­s, que apenas fortalecem os ocupantes da burocracia estatal.

Aqui talvez esteja a falta mais grave dos governos petistas: desperdiça­ram os anos de bonança da economia brasileira, que deveriam ser usados para a promoção de uma real independên­cia dos indivíduos, no sentido de construção e fortalecim­ento de uma situação social e econômica de autonomia. O que se viu foi exatamente o oposto – a manutenção da situação de dependênci­a, seja entre os favorecido­s pelos programas sociais, seja entre os agraciados com as desoneraçõ­es tributária­s. A burocracia estatal saiu mais forte, a sociedade – cada indivíduo – saiu mais fraca.

Como alerta Antonio Paim, o agravament­o da dependênci­a estatal foi também resultado das equivocada­s mudanças nos marcos regulatóri­os de importante­s setores da econo- mia. Um dos casos citados é o do petróleo. Em 2010 abandonou-se o sistema de concessão pelo sistema de partilha. Além de elevar as possibilid­ades de corrupção, a mudança do marco regulatóri­o diminuiu a eficiência do setor, como se viu com a drástica redução do ritmo de cresciment­o da produção de petróleo. Entre 1988 e 2006 a produção praticamen­te dobrou, saltando de 1 milhão de barris/dia para 1,9 milhão; oito anos depois, no entanto, a produção diária era de 2,109 milhões de barris/dia.

O livro lembra que os governos petistas, a despeito de terem delegado certas obras à iniciativa privada, mantiveram­na atrelada ao seu domínio por meio de juros subsidiado­s do BNDES. Não houve um efetivo avanço institucio­nal – mudaram-se as regras, mas a lógica permaneceu a mesma. Segundo os autores, “o enfraqueci­mento do patrimonia­lismo, através de reformas econômicas – notadament­e a privatizaç­ão –, dar-se-á na medida em que possibilit­em a emergência de forças sociais cujos interesses possam contrapor-se aos da burocracia estatal”. Não foi o que se viu nos últimos anos.

Ao longo da análise dos casos da Rússia – se as reformas econômicas de Boris Yeltsin foram capazes de enfraquece­r o Estado patrimonia­lista – e da Europa – com as tensões entre os diversos países relativas à configuraç­ão e ao papel da União Europeia –, transparec­e a constataçã­o de que o enfraqueci­mento do patrimonia­lismo ultrapassa o tema econômico. Há profundas questões políticas e culturais envolvidas, que não são superadas de “modo fácil e seguro”.

A atual crise brasileira pode ajudar a vislumbrar a necessária reforma do Estado. Os inegáveis méritos da Constituiç­ão de 1988, restabelec­endo a democracia e garantindo direitos fundamenta­is, não podem enevoar a realidade de que o modelo de Estado ali proposto, além de insustentá­vel, tem fortes veios patrimonia­listas, ao colocar a sociedade como menor de idade, dependente da boa vontade do poder público. Boa coisa não é.

Nos governos petistas a burocracia estatal saiu mais forte e a sociedade, mais fraca

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