Arraigado patrimonialismo
Não é infrequente atribuir boa parte das mazelas do Estado brasileiro ao patrimonialismo, que, entra século, sai século, continua a persistir como característica forte do poder público e da mentalidade dos governantes nacionais. No entanto, raras vezes o debate sobre a apropriação do Estado por uma elite burocrática versa sobre as reais causas do problema, sem conseguir apontar soluções consistentes e viáveis.
Diante desse cenário, o livro Patrimonialismo Brasileiro em Foco (Vide Editorial, 2015), de Antonio Paim, com a colaboração de Antonio Roberto Batista, Paulo Kramer e Ricardo Vélez Rodríguez, pode contribuir significativamente para o debate do tema. O propósito do texto é claro: “urge (...) disciplinar a discussão do problema, sem o que não lograremos maiores êxitos nessa batalha. Defrontam-nos com uma longa e arraigada tradição que não será ultrapassada de modo fácil e seguro”.
Os autores tipificam o patrimonialismo como “o encastelamento em determinados núcleos do aparelho burocrático estatal de indivíduos que se valiam da circunstância para se locupletarem e, por que não dizêlo, cuidar do próprio enriquecimento”. Eles querem “averiguar as possibilidades de outras estratégias”, tendo em vista que a privatização – tanto no Brasil, promovida nos anos 1990, como em outros países – não teve êxito em reduzir o poder econômico do Estado. E o que é mais grave: o retrocesso ocorrido nos últimos anos, com o fortalecimento do patrimonialismo durante os governos Lula e Dilma Rousseff.
A análise oferecida no livro desvela uma realidade habitualmente pouco notada: o patrimonialismo não faz distinções sociais. A dependência do Estado afeta pobres e ricos. Tanto os que recebem o Bolsa Família como os que recebem favores de uma eletiva desoneração tributária são dependentes do Estado e manipulados por ele. Naturalmente, as situações econômicas e sociais são muito díspares, mas a relação política com o poder público tem as mesmas cores – é uma relação de dominação, mantida pela ofer- ta de ganhos de curto prazo.
O patrimonialismo produz uma inversão do papel do Estado. Ao invés de promover a autonomia individual e coletiva, o Estado busca manter todos subservientes aos seus interesses. Nesse sentido, o olhar sobre a eficácia das políticas públicas – tanto as assistenciais quanto as de desenvolvimento da indústria, por exemplo – deve ser o de “quantos saem” delas, e não apenas “quantos estão” nelas incluídos. O número de beneficiados pouco indica a qualidade e a legitimidade do investimento feito nessas políticas públicas.
Vê-se aí a tensão entre o curto e o longo prazo. Os benefícios obtidos no presente podem ser grilhões que impeçam um futuro qualitativamente superior. Mantém-se assim a dependência da sociedade ante o Estado, seja pela precariedade da situação social das famílias que recebem a bolsa assistencial do governo, seja pela falta de competitividade da indústria brasileira. Todos ficam à mercê das benesses do poder público, distribuídas não por critérios republicanos, mas como resultado de escolhas político-partidárias, que apenas fortalecem os ocupantes da burocracia estatal.
Aqui talvez esteja a falta mais grave dos governos petistas: desperdiçaram os anos de bonança da economia brasileira, que deveriam ser usados para a promoção de uma real independência dos indivíduos, no sentido de construção e fortalecimento de uma situação social e econômica de autonomia. O que se viu foi exatamente o oposto – a manutenção da situação de dependência, seja entre os favorecidos pelos programas sociais, seja entre os agraciados com as desonerações tributárias. A burocracia estatal saiu mais forte, a sociedade – cada indivíduo – saiu mais fraca.
Como alerta Antonio Paim, o agravamento da dependência estatal foi também resultado das equivocadas mudanças nos marcos regulatórios de importantes setores da econo- mia. Um dos casos citados é o do petróleo. Em 2010 abandonou-se o sistema de concessão pelo sistema de partilha. Além de elevar as possibilidades de corrupção, a mudança do marco regulatório diminuiu a eficiência do setor, como se viu com a drástica redução do ritmo de crescimento da produção de petróleo. Entre 1988 e 2006 a produção praticamente dobrou, saltando de 1 milhão de barris/dia para 1,9 milhão; oito anos depois, no entanto, a produção diária era de 2,109 milhões de barris/dia.
O livro lembra que os governos petistas, a despeito de terem delegado certas obras à iniciativa privada, mantiveramna atrelada ao seu domínio por meio de juros subsidiados do BNDES. Não houve um efetivo avanço institucional – mudaram-se as regras, mas a lógica permaneceu a mesma. Segundo os autores, “o enfraquecimento do patrimonialismo, através de reformas econômicas – notadamente a privatização –, dar-se-á na medida em que possibilitem a emergência de forças sociais cujos interesses possam contrapor-se aos da burocracia estatal”. Não foi o que se viu nos últimos anos.
Ao longo da análise dos casos da Rússia – se as reformas econômicas de Boris Yeltsin foram capazes de enfraquecer o Estado patrimonialista – e da Europa – com as tensões entre os diversos países relativas à configuração e ao papel da União Europeia –, transparece a constatação de que o enfraquecimento do patrimonialismo ultrapassa o tema econômico. Há profundas questões políticas e culturais envolvidas, que não são superadas de “modo fácil e seguro”.
A atual crise brasileira pode ajudar a vislumbrar a necessária reforma do Estado. Os inegáveis méritos da Constituição de 1988, restabelecendo a democracia e garantindo direitos fundamentais, não podem enevoar a realidade de que o modelo de Estado ali proposto, além de insustentável, tem fortes veios patrimonialistas, ao colocar a sociedade como menor de idade, dependente da boa vontade do poder público. Boa coisa não é.
Nos governos petistas a burocracia estatal saiu mais forte e a sociedade, mais fraca