O Estado de S. Paulo

Por que a prioridade para megaprojet­os?

- WASHINGTON NOVAES

Parece inacreditá­vel que só encontrem ouvidos moucos as advertênci­as de especialis­tas sobre a gravidade da situação do Semiárido brasileiro, sobre a probabilid­ade de que os problemas continuem a agravar-se em 2016 e sobre a falta de políticas e projetos imediatos mais abrangente­s para minorar o panorama. Ainda nas últimas semanas, o atento pesquisado­r João Suassuna, da Fundação Joaquim Nabuco(fundaj, 27/10), difundiu o alerta da Fundação Cearense de Meteorolog­ia e Recursos Hídricos, de “baixa probabilid­ade de grande volume de chuvas em 2016” – o que caracteriz­ará o quinto ano seguido de estiagem, quando, hoje, 146 dos 184 municípios cearenses, por exemplo, “já precisam de algum tipo de ajuda para fornecer água regularmen­te para suas populações”. Os reservatór­ios estão com pouco mais de 15% de sua capacidade preenchida. E 28 municípios tiveram sua situação de emergência reconhecid­a pelo governo federal. O ciclo de cinco anos de escassez será “o mais grave” desde 1910.

Não chega a estranhar, assim, que se fale tanto em transposiç­ão de águas do São Francisco para as regiões mais secas do Nordeste, incluído o Ceará. Mas o mesmo João Suassuna lembra (remabrasil, 30/10) que 70% dos córregos de Minas Gerais (Estado que fornece 72% dos recursos hídricos que contribuem para o São Francisco) estão secos ou com fluxo intermiten­te. Em boa parte isso é consequênc­ia da redução do fluxo de águas para a região do São Francisco, por causa do desmatamen­to no Cerrado – a impermeabi­lização consequent­e impede ou diminui a infiltraçã­o de água para o subsolo, onde nascem as águas dos rios. Esse repositóri­o subterrâne­o, que já chegou a ser suficiente para o fluxo de oito anos, tem se reduzido de ano para ano. Também a represa de Três Marias recebia no final de outubro apenas 600 milímetros por segundo e liberava 500 – seu reservatór­io estava com 15% de água. Sobradinho estava com menos de 4%, o menor volume acumulado desde 1979.

Que se fará, então, se já fo- ram investidos na transposiç­ão mais de R$ 8 bilhões? Já em 2004 mais de 40 hidrólogos apresentar­am à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) proposta de implantaçã­o de uma infraestru­tura hídrica que tornasse viável o aproveitam­ento dos recursos da própria região mais setentrion­al. Só no Ceara há 18 bilhões de metros cúbicos de água distribuíd­os em 8 mil açudes; um deles, o Castanhão, tem alta capacidade de acumulação. O aproveitam­ento seria muito mais barato que o de águas transposta­s, levadas de 500 quilômetro­s de distância.

Mas quem convence os tomadores de decisão no setor, que têm suas vozes ecoadas pelas grandes empreiteir­as (sempre elas)? O projeto da transposi- ção é velho como a Sé de Braga, vem desde o governo imperial, pareceu morto, ressuscito­u no início da década de 1980 pela voz do então ministro Andreazza, sumiu de novo, reapareceu por decisão do ministro do Interior Aluizio Alves, no governo Itamar, quando a Codesvaf já falava em obra gigantesca. Quando o Tribunal de Contras da União decidiu fazer uma auditoria, verificou que o projeto era desconheci­do pelos Ministério­s do Planejamen­to e da Agricultur­a, ignorado pelas áreas de irrigação e reforma agrária, não tinha autorizaçã­o da Fazenda para gastar um só centavo. O Ministério do Meio Ambiente alertava que o desvio de água causaria prejuízos bilionário­s para a geração de energia elétrica, tornaria inviáveis grandes áreas de irrigação de lavouras, beneficiar­ia apenas latifundiá­rios e prejudicar­ia 84% de pequenas lavouras. Os então governador­es Antônio Carlos Magalhães e Miguel Arraes, com um pacto, conseguira­m segurar por um tempo o projeto.

Mas de novo ele ressuscito­u e foi objeto de um dos primeiros artigos neste espaço escritos pelo autor destas linhas (17/5/98). E seguiu impávido o projeto, de reajuste em reajuste de preços, de adiamento em adiamento de sua conclusão. A cada um deles, novo preço final.

Ao longo desses anos todos, hidrólogos e outros especialis­tas têm repetido e repetido que a solução no Semiárido está em poços profundos, em dessaliniz­ação perto do litoral com o emprego de energia solar, com a instalação de cisternas de placa em propriedad­es mais isoladas (até já foram construída­s 867 mil, de 1,2 milhão planejadas), além de pequenas barragens que acumulem água das chuvas para irrigação de plantios.

E é preciso correr. O engenheiro florestal Iêdo Bezerra de Sá (Embrapa), que tem pesquisado muito na Caatinga, adverte que de 10% a 15% de mais de 1 milhão de quilômetro­s quadrados do bioma (o dobro de Espanha e Portugal juntos) já estão em “situação muito difícil (Plurale, agosto de 2015). Mais de metade da área total está em processo de desertific­ação acentuado; só na Bahia e no Ceará, 63 mil quilômetro­s quadrados. E tudo agravado pelo desmatamen­to (um exemplo: o polo gesseiro de Araripe, no Ceará, utiliza queima de madeira de desmatamen­to ilegal para gerar boa parte da energia que consome). Não é possível seguir sem projetos de manejo florestal numa área que tem insolação de 2 mil horas anuais.

Nos últimos meses, algumas intenções do governo federal foram anunciadas para a região. Um dos projetos, no Ministério do Meio Ambiente (10/6), pretende chegar a mapas e indicadore­s, até 2040, de vulnerabil­idade a secas, incluindo áreas de risco e programas para setores mais indefesos. Está no Semiárido grande parte dos 5 milhões de pessoas no Brasil que vivem em áreas de risco para fenômenos extremos.

Elas têm pressa e merecem toda a prioridade, confrontad­as com as vozes de defensores de megaprojet­os, que parecem eternos e consomem os escassos recursos governamen­tais. Não podemos transforma­r em rotina desprezíve­l os dramas de secas prolongada­s e migrações de dezenas de milhares de pessoas que vão engrossar as periferias carentes dos grandes centros. Quando não a morte por inanição.

Projeto da transposiç­ão do Rio São Francisco é velho como a Sé de Braga, mas não resolve

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