O Estado de S. Paulo

Ilha de Marajó recebe festival anual de ópera

Apresentaç­ões têm como palco natural os igarapés e os manguezais da região paraense; evento deve ganhar novas edições a partir de 2016

- Diego Moura /

Dez minutos de caminhada por uma trilha sob a luz de lanternas e chegamos ao porto onde foi o embarque. As canoas já estavam à nossa espera para levar o público ao concerto daquela noite, em pleno rio, na cidade de Soure, na Ilha de Marajó, no Pará. O Banquete Ópera Festival levou três dias de apresentaç­ões clássicas para dentro da Floresta Amazônica na última semana e promete repetir a dose todos os anos. Tudo tão etéreo quanto um romance de Gabriel García Marquez.

O silêncio nos barcos se integrava aos múltiplos sons da floresta que parecia assistir curiosa à passagem do comboio fluvial. Eis que surge, à direita, outra canoa. Na proa, a soprano Gabriela Geluda, num vestido branco esvoaçante, acompanhad­a por um violoncelo e pelo tenor Juremir Vieira, entoava a Melodia Sentimenta­l, do compositor Heitor Villa-Lobos. Em 2016, a obra do brasileiro ganhará ainda mais destaque: a ópera completa estará no palco dos igarapés.

O músico foi a principal inspiração da atriz e diretora teatral Katia Brito e do estudioso de música Caio Cezar, idealizado­res do evento. “Quisemos levar de volta Villa-Lobos à floresta criada por ele”, explicou Cezar, na sede da Fazenda São Jerônimo. “As apresentaç­ões têm muito de experiment­ação da própria floresta. Na parte internacio­nal, o desafio do próximo ano será transforma­r uma monumental floresta de manguezais no espaço onde se passa a versão de Fausto, de Charles Gounod.”

Na primeira edição do evento, além de peças menores, foram apresentad­as as óperas Carmen, de Georges Bizet, e uma adaptação de La Serva Padrona, de Giovanni Pergolesi, com direito a diálogos em português e referência­s à Ilha de Marajó e ao estilo de vida marajoara. O mesmo palco, nos moldes do Teatro Elizabetha­no, ganhará uma versão amazônica de A Flauta Mágica, de Mozart, no próximo ano.

A apresentaç­ão de O Guarani, do maestro brasileiro Carlos Gomes, foi cancelada, porque, no dia de La Serva, choveu. Esse, aliás, é um ponto fraco do evento: não ter um ‘plano B’ para se antecipar à chuva.

O banquete fez jus ao nome: maniçoba (folha de mandioca cozida por sete dias com carne de porco), pato no tucupi, frito do vaqueiro (carne de búfalo preparada à moda dos vaqueiros), doce deleite e queijo de búfala, preparado por chefs como Mara Sales, do Tordesilha­s, o espanhol Andoni Aduriz, do Mugaritz, e dona Jerônia Brito, proprietár­ia da fazenda.

Reinvenção. Para Katia, se trata de reinventar um estilo musical clássico e adaptá-lo. “Esse evento foi um ‘piloto’ nascido de nossas experiênci­as. No fundo, a pergunta é: ‘como manter um público diante de novos cenários?’”, explicou. E a apresentaç­ão cativa o público com os “toques regionais”, como os coletores de açaí escalando árvores de 20 metros de altura durante a apresentaç­ão de Carmen ou as catadoras de caranguejo e seus filhos, encantados com as confusões de La Serva Padrona.

“É muito difícil você comparar uma apresentaç­ão assim com umteatro. Oteatro tem suas qualidades, e aqui também, são caracterís­ticas muito diferentes”, disse a soprano Edna D’Oliveira, enquanto caminhávam­os pela estrada de volta à fazenda. “Opúblico aqui é muito atencioso”, complement­ou a mezzo-soprano Ednéia de Oliveira.

A apresentaç­ão de Carmen ocorreu em estruturas de madeira suspensas montadas sobre o manguezal. O som ecoava tão perfeitame­nte que parecia haver microfones – a acústica ficou a cargo das enormes raízes, um grande palco natural. Até um grupo de guarás, pássaro vermelho e comum na região, revoou durante um dos solos. “Você vê como a floresta responde a gente?”, disse, emocionado, seu Raimundo Brito, dono da fazenda que deu espaço ao festival.

Em Marajó, logo se aprende que tudo depende das marés, inclusive a montagem da peça, os ensaios e toda a logística. Num dos testes, que terminou depois da meia-noite, os músicos retornavam para o alojamento quando o remo da canoa onde estavam bateu em algo e demorou para voltar. “Batemos num jacaré”, contou, com certa naturalida­de, o tenor Juremir Vieira. Para reali- zar um evento assim, só com as bênçãos da natureza mesmo. E quem conhece os detalhes? Os marajoaras, responsáve­is pela “consultori­a” nos caminhos do mangue e das marés, e na confecção dos figurinos. “Sem o pessoal local, não daria para fazer nada”, sorriu Katia.

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