Revisita ao movimento concreto 50 anos depois
Críticas de Ferreira Gullar publicadas entre 1956 e 61 estão em antologia
“O racionalismo rouba à arte toda a autonomia e substitui as qualidades intransferíveis da obra de arte por noções da objetividade científica: assim os conceitos de forma, espaço, tempo, estrutura – que na linguagem das artes estão ligados a uma significação existencial, emotiva, afetiva – são confundidos com a aplicação teórica que deles faz a ciência (...) Não concebemos a obra de arte nem como ‘máquina’ nem como ‘objeto’, mas como um quase-corpus, isto é, um ser cuja realidade não se esgota nas relações exteriores de seus elementos; um ser que, decomponível em partes pela análise, só se dá plenamente à abordagem direta, fenomenológica.”
Críticas ao rigor racional excessivo do concretismo brasileiro, as afirmações, de março de 1959, fundam o neoconcretismo no Brasil, o triunfo da subjetividade sobre o cientificismo técnico. O autor, os signatários e o veículo eram o que havia de mais relevante nas artes e na imprensa brasileira então: o poeta e crítico de arte Ferreira Gullar, os artistas Amilcar de Castro, Lygia Pape, Lygia Clark e Franz Weissman, o poeta Theon Spanudis, o jornalista Reynaldo Jardim e o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil.
Passadas cinco décadas, 103 textos publicados entre 1956 e 1961 por Gullar no caderno do hoje extinto diário saem na publicação Antologia Crítica – Su- plemento Dominical do Jornal do Brasil (Editora Contra Capa) e motivam a exposição Desde Muito Antes, aberta na quarta-feira, dia 11, na galeria Gustavo Rebello, que fica no Hotel Copacabana Palace. É a primeira vez que a produção do escritor na imprensa é publicada em conjunto.
Na exposição, cujo aspecto enxuto é superado por seu ineditismo, foram reunidas 24 obras apresentadas naqueles seis anos, todas de artistas tratados nas reflexões críticas de Gullar no jornal. Nomes como Amilcar, Helio Oiticica, Lygia Clark, Lygia Pape, Ivan Serpa, Aluisio Carvão, Alfredo Volpi e Frans Krajcberg. E também outros que não figuram entre os mais conhecidos representantes do período, mas inseridos no mesmo cenário, e com obras de mesma qualidade: João José Costa, Ubi Bava, Rubem Ludolf, Almir Mavignier e Decio Vieira.
De Lygia Clark, a sequência de objetos Casulo (1958) e Bicho ( sem data precisa, mas possivelmente de 1961, segundo o galerista e marchand Gustavo Rebello) mostra o caminho feito pelas obras tridimensionais da artista, saídas da parede para ganhar o mundo – filhote de Casulo, Bicho já é “solto”. Desde Muito Antes (1956/1991), de João José Costa, preta e amarela, concebida à época, mas só desenvolvida 35 anos depois, ilustra a capa do livro e faz uma ponte para duas telas que representam bem as pesquisas sobre cor de Aluisio Car- vão, Amarelobranco (1959) e Cromática IV (1960).
De Oiticica foi escolhido um cartão que pintou nos anos 1950; Serpa assina três pinturas geométricas (as últimas do gênero que o pintor faria, aponta Rebello) com o mesmo suporte, feitas na Espanha em 1958. Ambos usaram um cartão do Museu de Arte Moderna do Rio, que, prontos, eram
dados de presente.
Revisão. Ferreira Gullar ajudou na edição da Antologia Crítica. Pesquisados no centro de documentação que restou do Jornal do Brasil, depois de sua extinção no papel, em 2010, e também no acervo de microfilmes da Biblioteca Nacional e em arquivos particulares, os textos têm trechos fa- lhados, que passaram pelo autor para correções pontuais.
O SDJB – que passaria a sair aos sábados, por ser domingo um dia em que o jornal já é muito robusto – circulou de junho de 1956 a dezembro de 1961 e chegou a ser considerado o mais importante caderno cultural da imprensa brasileira de então. Gullar estreou como editor da página de artes plásticas em outubro de 1956.
Ele resenhava exposições individuais e coletivas, salões de arte e bienais do eixo Rio-São Paulo, com ênfase nas vanguardas construtivas, grupo com o qual convivia. Falava também de arte moderna, do meio da arte no Brasil, a política pública para o setor das artes, suas considerações críticas sobre movimentos como o tachismo, tendência surgida no pós-guerra calcada na recusa de formalização e no enaltecimento do gesto espontâneo. E ainda de literatura, uma vez que as experiências concretistas e neoconcretistas na poesia (as suas, inclusive) estavam na ordem do dia.
O legado é um panorama abrangente de uma fase decisiva da arte brasileira: primeiro, os construtivistas do Grupo Ruptura, de São Paulo, romperam com a tradição da arte figurativa, baseando-se numa busca pela geometria perfeita, livre de rastros do gesto do artista; depois, os neoconstrutivistas do Grupo Frente se opuseram a esses dogmas, rechaçando a “arte pela arte”.
Ao reverberar todo esse ambiente no suplemento, Gullar “contribuiu de forma oportuna e combativa, apresentando alternativas às questões em tela. Quando era necessário, ele debatia com as autoridades dos diferentes assuntos, iniciando controvérsias por intermédio de seus artigos – em consequência, suas análises estabeleceram um padrão ético, que é difícil emular até hoje”, avaliam os pesquisadores Renato Rodrigues da Silva e Bruno Melo Monteiro, organizadores, no texto do livro.
Uma revisita. Único sobrevivente dos grupos, Gullar tem poucas edições do SDJB, que permaneceram com ele mesmo com o exílio no período da ditadura militar, as mudanças de casa e a ação do tempo e do mofo. Ao revisitá-las agora, ele comprovou a relevância do concretismo e do neoconcretismo para o destaque internacional que a arte brasileira ganharia dali para frente.
“O concretismo foi um movimento original, talvez o único com alguma expressão internacional nascido aqui. A crítica estrangeira reconheceu essa originalidade, porque até aqui a arte brasileira era uma decorrência da arte europeia, falava a linguagem da arte europeia. Mas eu nunca achei que a arte concreta significasse o fim de outra, respeitava os artistas figurativos por sua qualidade e escrevi muito sobre Goeldi, Di Cavalcanti, Guignard. Muitos artistas ficaram descontentes, mas eu sempre procurei, como crítico, ter visão objetiva do trabalho”, afirma ainda.
“No caso do neoconcretismo, o nome já dizia que era decorrente da arte concreta, mas com o abandono de alguns princípios fundamentais. Em Lygia Clark, resultou na invenção de outra linguagem artística, assim como em Hélio Oiticica. O Manifesto Neoconcreto foi de fato um documento novo, que nasceu das discussões da experiência de cada artista; o único que eu conheço que não prega o futuro, fala do que está acontecendo. Quem escreveu fui eu, mas era um resultado do que se discutia. Era uma ruptura muito séria.”