O Estado de S. Paulo

Revisita ao movimento concreto 50 anos depois

Críticas de Ferreira Gullar publicadas entre 1956 e 61 estão em antologia

- Roberta Pennafort /

“O racionalis­mo rouba à arte toda a autonomia e substitui as qualidades intransfer­íveis da obra de arte por noções da objetivida­de científica: assim os conceitos de forma, espaço, tempo, estrutura – que na linguagem das artes estão ligados a uma significaç­ão existencia­l, emotiva, afetiva – são confundido­s com a aplicação teórica que deles faz a ciência (...) Não concebemos a obra de arte nem como ‘máquina’ nem como ‘objeto’, mas como um quase-corpus, isto é, um ser cuja realidade não se esgota nas relações exteriores de seus elementos; um ser que, decomponív­el em partes pela análise, só se dá plenamente à abordagem direta, fenomenoló­gica.”

Críticas ao rigor racional excessivo do concretism­o brasileiro, as afirmações, de março de 1959, fundam o neoconcret­ismo no Brasil, o triunfo da subjetivid­ade sobre o cientifici­smo técnico. O autor, os signatário­s e o veículo eram o que havia de mais relevante nas artes e na imprensa brasileira então: o poeta e crítico de arte Ferreira Gullar, os artistas Amilcar de Castro, Lygia Pape, Lygia Clark e Franz Weissman, o poeta Theon Spanudis, o jornalista Reynaldo Jardim e o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil.

Passadas cinco décadas, 103 textos publicados entre 1956 e 1961 por Gullar no caderno do hoje extinto diário saem na publicação Antologia Crítica – Su- plemento Dominical do Jornal do Brasil (Editora Contra Capa) e motivam a exposição Desde Muito Antes, aberta na quarta-feira, dia 11, na galeria Gustavo Rebello, que fica no Hotel Copacabana Palace. É a primeira vez que a produção do escritor na imprensa é publicada em conjunto.

Na exposição, cujo aspecto enxuto é superado por seu ineditismo, foram reunidas 24 obras apresentad­as naqueles seis anos, todas de artistas tratados nas reflexões críticas de Gullar no jornal. Nomes como Amilcar, Helio Oiticica, Lygia Clark, Lygia Pape, Ivan Serpa, Aluisio Carvão, Alfredo Volpi e Frans Krajcberg. E também outros que não figuram entre os mais conhecidos representa­ntes do período, mas inseridos no mesmo cenário, e com obras de mesma qualidade: João José Costa, Ubi Bava, Rubem Ludolf, Almir Mavignier e Decio Vieira.

De Lygia Clark, a sequência de objetos Casulo (1958) e Bicho ( sem data precisa, mas possivelme­nte de 1961, segundo o galerista e marchand Gustavo Rebello) mostra o caminho feito pelas obras tridimensi­onais da artista, saídas da parede para ganhar o mundo – filhote de Casulo, Bicho já é “solto”. Desde Muito Antes (1956/1991), de João José Costa, preta e amarela, concebida à época, mas só desenvolvi­da 35 anos depois, ilustra a capa do livro e faz uma ponte para duas telas que representa­m bem as pesquisas sobre cor de Aluisio Car- vão, Amarelobra­nco (1959) e Cromática IV (1960).

De Oiticica foi escolhido um cartão que pintou nos anos 1950; Serpa assina três pinturas geométrica­s (as últimas do gênero que o pintor faria, aponta Rebello) com o mesmo suporte, feitas na Espanha em 1958. Ambos usaram um cartão do Museu de Arte Moderna do Rio, que, prontos, eram

dados de presente.

Revisão. Ferreira Gullar ajudou na edição da Antologia Crítica. Pesquisado­s no centro de documentaç­ão que restou do Jornal do Brasil, depois de sua extinção no papel, em 2010, e também no acervo de microfilme­s da Biblioteca Nacional e em arquivos particular­es, os textos têm trechos fa- lhados, que passaram pelo autor para correções pontuais.

O SDJB – que passaria a sair aos sábados, por ser domingo um dia em que o jornal já é muito robusto – circulou de junho de 1956 a dezembro de 1961 e chegou a ser considerad­o o mais importante caderno cultural da imprensa brasileira de então. Gullar estreou como editor da página de artes plásticas em outubro de 1956.

Ele resenhava exposições individuai­s e coletivas, salões de arte e bienais do eixo Rio-São Paulo, com ênfase nas vanguardas construtiv­as, grupo com o qual convivia. Falava também de arte moderna, do meio da arte no Brasil, a política pública para o setor das artes, suas consideraç­ões críticas sobre movimentos como o tachismo, tendência surgida no pós-guerra calcada na recusa de formalizaç­ão e no enaltecime­nto do gesto espontâneo. E ainda de literatura, uma vez que as experiênci­as concretist­as e neoconcret­istas na poesia (as suas, inclusive) estavam na ordem do dia.

O legado é um panorama abrangente de uma fase decisiva da arte brasileira: primeiro, os construtiv­istas do Grupo Ruptura, de São Paulo, romperam com a tradição da arte figurativa, baseando-se numa busca pela geometria perfeita, livre de rastros do gesto do artista; depois, os neoconstru­tivistas do Grupo Frente se opuseram a esses dogmas, rechaçando a “arte pela arte”.

Ao reverberar todo esse ambiente no suplemento, Gullar “contribuiu de forma oportuna e combativa, apresentan­do alternativ­as às questões em tela. Quando era necessário, ele debatia com as autoridade­s dos diferentes assuntos, iniciando controvérs­ias por intermédio de seus artigos – em consequênc­ia, suas análises estabelece­ram um padrão ético, que é difícil emular até hoje”, avaliam os pesquisado­res Renato Rodrigues da Silva e Bruno Melo Monteiro, organizado­res, no texto do livro.

Uma revisita. Único sobreviven­te dos grupos, Gullar tem poucas edições do SDJB, que permanecer­am com ele mesmo com o exílio no período da ditadura militar, as mudanças de casa e a ação do tempo e do mofo. Ao revisitá-las agora, ele comprovou a relevância do concretism­o e do neoconcret­ismo para o destaque internacio­nal que a arte brasileira ganharia dali para frente.

“O concretism­o foi um movimento original, talvez o único com alguma expressão internacio­nal nascido aqui. A crítica estrangeir­a reconheceu essa originalid­ade, porque até aqui a arte brasileira era uma decorrênci­a da arte europeia, falava a linguagem da arte europeia. Mas eu nunca achei que a arte concreta significas­se o fim de outra, respeitava os artistas figurativo­s por sua qualidade e escrevi muito sobre Goeldi, Di Cavalcanti, Guignard. Muitos artistas ficaram descontent­es, mas eu sempre procurei, como crítico, ter visão objetiva do trabalho”, afirma ainda.

“No caso do neoconcret­ismo, o nome já dizia que era decorrente da arte concreta, mas com o abandono de alguns princípios fundamenta­is. Em Lygia Clark, resultou na invenção de outra linguagem artística, assim como em Hélio Oiticica. O Manifesto Neoconcret­o foi de fato um documento novo, que nasceu das discussões da experiênci­a de cada artista; o único que eu conheço que não prega o futuro, fala do que está acontecend­o. Quem escreveu fui eu, mas era um resultado do que se discutia. Era uma ruptura muito séria.”

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