O Estado de S. Paulo

Por que a idade leva os sabores embora?

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Como não teve minha crônica na semana em que muitos entregaram o espaço às mulheres, perdi a chance. Teria dado à escritora Joyce Cavalcanti ou à Anna Veronica Mautner, à Judith Patarra, Marcia Denser ou à Marli Gonçalves, cujas batalhas acompanho há longos anos. Fico devendo. Senteime para escrever e pensei em falar sobre esse personagem sórdido da nossa história, Eduardo Cunha, mas tive ânsias, o estômago revirou. Preferi falar das coisas simples e importante­s que perdemos com a idade.

Na manhã de domingo, fui ao supermerca­do comprar gelo, porque é a melhor coisa a se comprar neste calor. É uma delícia apanhar aquele pacotinho, abraçá-lo, entrando no carro, colocando-o no colo como um bebê geladinho. Um saco de gelo é acariciant­e, repousante, nos deixa de bem com a vida. Em casa, as janelas todas abertas, levei o saco de ge- lo para o sofá, tendo o cuidado antes de forrar com um plástico, e me deitei, a cabeça repousando sobre o gelo. Um frescor total me invadiu, desceu da cabeça para todo o corpo, foi ocupando o peito, os braços, o estômago, as pernas. Adormeci em paz com o mundo.

Entreabri os olhos e vi sobre a mesa de centro o vidrinho de Amendocrem, que tinha comprado num impulso irresistív­el. Fazia décadas, e coloquem décadas nisso, que não passava a faca na manteiga espessa de amendoim, lambuzando um pão. Poucas coisas na infância foram melhor que o Amendocrem. Tinha um gosto forte de amendoim socado, um sabor doce e salgado, agridoce, como aprendi mais tarde, que encantava. Passado um largo tempo, a pasta de amendoim, que víamos tanto em filmes americanos, foi “proibida” pelos médicos e nutricioni­stas. Colesterol, alegavam. Colesterol puro. Porém, naquele domingo, esqueci tudo e mergulhei na orgia. Ou no que prometia ser uma orgia. Dei a primeira mordida. Senti tudo o que esperava sentir de volta? Estava pronto a mergulhar num turbilhão de emoções e nada aconteceu. Sei, perdeu a validade, devia ter olhado. Nada disso, estava inteiro dentro do prazo, longe de prescrever. Esqueci o gosto, o cheiro, a emoção? Tentemos de novo. Agora, sim, vai ser como naqueles anos 70, quando nos reuníamos em uma sala, um monte de gente para experiment­ar LSD, sob controle. Bem, dizíamos que era sob controle, mas quem nos controlava estava mais atacado do que a gente.

Algumas coisas permanecem. O chocolate Diamante Negro continua igual. Crocante. O Sonho de Valsa também. Viva. Mas os Dadinhos muda- ram, não têm mais aquele gosto. Perderam a fórmula? Mudaram? Ou eu é que mudei e me recuso a acreditar. Um amigo, dia desses, perguntou:

“Tomou de novo o Óleo de Fígado de Bacalhau?” “Nunca mais.” “Pois devia tomar.” “Você tomou?” “Tomei. E odiei, continua um horror.” E nossas mães nos obrigavam a tomar. Quando fazíamos algum mal feito, os pais nos ameaçavam com Óleo de Rícino. Outra coisa que desaparece­u foi o Ovomaltine tipo suíço. Era tão bom, crocante, um gosto diferente, forte. Até hoje lembro a primeira vez que tomei Ovomaltine. Estava na Suíça, em 1963, em Interlaken. Tinha um passe livre da Wagon Lits Cook, que comemorava seu centenário, e com ele eu podia atravessar o país em qualquer direção. Gratuitame­nte. Certa manhã, numa praça, vi a barraquinh­a do Ovomaltine e um grupo de pessoas tomando. Cheguei, pedi. Nunca mais deixei de tomar. Adorava. Quando ia ao Rio de Janeiro de carro, havia uma lanchonete nas proximidad­es da fábrica, na Dutra, que vendia o verdadeiro. Mas parei de tomar quando o tipo suíço saiu do mercado. Por que saiu?

Nada melhor do que a bolacha Champanhe. Era saborosa, parecia pão de ló seco, e havia por cima uma camada de um delicado açúcar cristal. Não havia nada mais delicioso, coisa dos deuses. Cara, não se vendia em qualquer lugar. Quando os pais queriam nos recompensa­r por alguma boa ação (tão raras) nos davam uma caixinha de bolacha Champanhe, com a condição de não comer de uma vez. Não comíamos. Guardávamo­s avaramente, escondíamo­s.

Eu me tornava um mão de vaca, protegia meu tesouro com unhas e dentes. Oferecia uma para a Itajara Malkomes, vizinha de casa, cujo nome tinha sido reduzido para Ita e eu achava a coisa mais linda. Vejam só, champanhe sempre como arma de sedução. Hoje, tem bolacha Champanhe aos montes em mercadinho­s e supermerca­dinhos, ao alcance de todo mundo. Mas onde está aquele sabor que me elevava?

Para onde foram aqueles tubos redondos, com vaquinhas desenhadas, que continham rodelas de chocolate protegidas por papel laminado? Vendiam na seção de cinema e custavam os olhos da cara. Se algum da turma comprava, via-se assediado por todos, precisava fugir.

E a bala Chita? Havia até uma definição para algum reles conquistad­or cafona: O gostosão da bala Chita.

Alguns produtos não têm mais o mesmo gosto. Perderam a fórmula? Ou eu é que mudei?

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